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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O profeta como prefiguração do porta-voz moderno

Ao longo da história, a linguagem não foi apenas meio de comunicação, mas também instrumento de autoridade. Houve uma época em que Deus se valeu da voz humana para falar em Seu nome. Essa missão foi confiada aos profetas, que surgiram como mediadores entre o divino e o humano, estabelecendo uma clara divisória entre aquilo que pertence ao Reino de Deus e aquilo que pertence ao mundo dos homens.

Neste sentido, o profeta pode ser compreendido como a prefiguração do porta-voz moderno. Ambos partilham uma característica comum: a palavra que proferem não lhes pertence, mas emana de uma autoridade maior.

A função profética: voz de Deus na história

Na Sagrada Escritura, encontramos inúmeras passagens em que os profetas introduzem seus oráculos com fórmulas como: “Assim fala o Senhor” (Ez 2,4; Is 45,1). Essa expressão indica que não se trata de um discurso pessoal, mas de uma mensagem de origem divina. O profeta não é um inventor, mas um canal. Sua função é ser porta-voz da Verdade que transcende as contingências do tempo e da cultura.

Além disso, o profeta cria uma divisória fundamental:

  • De um lado, o espaço sagrado, que pertence ao Senhor;

  • De outro, o espaço profano, marcado pelas escolhas humanas e pelas vicissitudes da política.

Essa separação é reafirmada por Cristo quando ensina: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).

O porta-voz moderno: herdeiro secular

No plano político e institucional, encontramos uma figura que guarda semelhança estrutural com o profeta: o porta-voz. Ao dirigir-se à sociedade em nome de um chefe de Estado ou de uma instituição, o porta-voz também estabelece uma divisória: sua fala não é uma opinião pessoal, mas a manifestação pública de uma autoridade que ele representa.

Aqui, porém, há uma diferença essencial. Enquanto o profeta fala em nome da Verdade absoluta, o porta-voz moderno fala em nome de uma autoridade temporal, sujeita a erros, contingências e até mesmo à manipulação. A legitimidade do profeta deriva diretamente de Deus; a do porta-voz deriva de um mandato humano.

A palavra como mediação

O ponto de convergência entre ambos é a consciência de que falar em nome de outrem é carregar um peso de autoridade e responsabilidade. Seja no âmbito religioso ou no político, a voz do porta-voz ultrapassa sua individualidade para se tornar símbolo e mediação.

Assim, a história da linguagem mostra que a palavra humana sempre teve um caráter sagrado e político ao mesmo tempo. A fala representativa — seja a do profeta ou a do porta-voz — instaura um espaço distinto da conversa ordinária, onde o que se diz tem o peso de uma autoridade maior.

Considerações finais

O profeta, ao emprestar sua voz a Deus, inaugura uma forma de comunicação que transcende o indivíduo e funda uma tradição de mediação verbal que ressoa até hoje. O porta-voz moderno, ainda que em escala secular, herda essa função: falar em nome de outro, separar a palavra comum da palavra de autoridade, instaurar a divisória entre o privado e o público, entre o individual e o institucional.

Nesse paralelo, podemos reconhecer que a linguagem continua a ser, tanto no campo espiritual quanto no político, um espaço de representação, responsabilidade e poder.

Bibliografia

  • Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB, São Paulo: Loyola, 2002.

  • Heschel, Abraham J. Os Profetas. São Paulo: Paulinas, 2005.

  • Ricoeur, Paul. A simbólica do mal. Petrópolis: Vozes, 2015.

  • Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

  • Schmitt, Carl. Teologia Política. Lisboa: Edições 70, 2006.

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