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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

A cadeia negativa do mal, a palavra e a pólvora: da pequenez à grandeza da alma

Introdução

Quando A pratica uma injustiça contra B, e B responde com outra injustiça, instaura-se uma sucessão de atos que podemos chamar de cadeia negativa do mal. Essa espiral descendente empobrece espiritualmente os envolvidos, revelando a fragilidade da alma diante da tentação da vingança.

Mas o problema não se limita ao plano individual: há situações em que a obstinação de certos grupos ou regimes em conservar apenas o conveniente, ainda que dissociado da verdade, corrói a vida coletiva. Nesses casos, a palavra — destinada a mediar a verdade — é degradada em instrumento de tirania, e o conflito é deslocado para o campo da pólvora.

1. A palavra como ordem e a sua corrupção

A palavra, no plano filosófico e teológico, é expressão do Logos, isto é, da razão que ordena o ser e o conduz à verdade.¹ Por isso, a política e o direito deveriam estar enraizados na palavra verdadeira.

Quando o poder se fecha em conservar apenas o conveniente —e dissociado da verdade —, a palavra é corrompida: em vez de ser instrumento de comunhão, torna-se arma de exclusão e manipulação. O direito, nesse contexto, deixa de ser ars boni et aequi² e passa a ser a “arte de ferrar com os inimigos” segundo os caprichos do falso juiz.

2. O limite da palavra e a irrupção da pólvora

Quando a palavra perde sua função racional e espiritual, a tirania se instaura, e resta apenas a pólvora como último recurso.

Exemplos históricos ilustram essa dinâmica:

  • Revolução Americana (1776): após sucessivas petições ao rei Jorge III, pedindo representação no Parlamento, os colonos foram ignorados. O Declaration of Independence justifica a ruptura afirmando que, quando o poder se torna destrutivo da vida e da liberdade, o povo tem o direito de abolir tais formas de governo.³

  • Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): começou com a Defenestração de Praga, quando representantes protestantes foram lançados pela janela por ordem imperial.⁴ A obstinação em conservar hegemonias dissociadas da realidade fez da pólvora o árbitro da Europa.

  • Ourique (1139): a vitória de D. Afonso Henriques contra os mouros foi precedida de um milagre, no qual Cristo lhe apareceu.⁵ A pólvora (a espada medieval) tornou-se legítima porque a palavra já não encontrava espaço diante da obstinação islâmica em conservar a tirania dissociada da verdade do Evangelho.

3. Justiça, vingança e caridade

3.1 Vingança: perpetuação da pequenez

Quando alguém revida movido pelo ódio ou ressentimento, mantém-se preso à cadeia negativa do mal:

  • Encolhe a alma, porque substitui a razão e a justiça pela impulsividade.

  • Perpetua a desordem, criando espirais intermináveis de conflito e de silêncio.

  • Confunde justiça com autopreservação, pois o mal é respondido pelo mal em nome do próprio interesse ou orgulho ferido.

3.2 Justiça: ruptura da cadeia negativa

Quando a resposta ao mal é fundada na verdade e no bem comum, mesmo que se precise recorrer à força, os efeitos são opostos:

  • Eleva a alma, porque a ação é medida, não impulsiva, e ordenada à verdade e a Deus.

  • Restaura a ordem, impedindo que o mal se perpetue.

  • Transforma o negativo em positivo, na medida em que a resposta correta ao mal não é mero revide, mas correção e preservação do bem maior.

A pólvora, nesse contexto, não é instrumento de ódio, mas de sanção pedagógica, mostrando ao agressor que a desordem instaurada não é compatível com a verdade nem com a justiça.⁶ 

4. Da grandeza da alma diante da justiça

A alma que paga o mal com o mal encolhe; mas a alma que responde ao mal com a justiça verdadeira — ainda que, em último caso, com a força — se engrandece, porque age em conformidade com a verdade, não pelo ressentimento.

A verdadeira grandeza da alma reside em saber:

  1. Quando perseverar na palavra;

  2. Quando ceder à misericórdia;

  3. Quando, em último caso, aceitar que a pólvora seja instrumento da justiça fundada em Deus.

Assim, a justiça interrompe a cadeia negativa do mal e transforma o negativo em positivo, enquanto a vingança perpetua a decadência do ser. 

Fluxo Conceitual: Da maldade à grandeza da alma

[1] Mal praticado por A contra B
          │
          ▼
[2] Resposta humana comum: Mal devolvido (Vingança)
          │
          ▼
      Cadeia negativa do mal
          │
          ▼
[3] Obstinação do conservantista em preservar apenas o conveniente
          │ Dissociação da verdade
          ▼
[4] Palavra corrompida / diálogo esgotado
          │
          ▼
[5] Último recurso: Pólvora (força legítima / bellum iustum)
          │
          ▼
[6] Justiça proporcional, fundanda na verdade e na caridade
          │
          ▼
[7] Interrupção da cadeia negativa do mal
          │
          ▼
[8] Transformação do negativo em positivo
          │
          ▼
[9] Grandeza da alma: ação ordenada à verdade e a Deus 

Explicação do Fluxo

  1. Mal praticado: A injustiça inicial desencadeia a reação humana.

  2. Vingança: A resposta movida por ódio perpetua a cadeia negativa.

  3. Obstinação conservantista: Quando o poder busca conservar apenas conveniências, a palavra perde seu efeito.

  4. Palavra corrompida: O diálogo e a argumentação são inúteis; a injustiça se consolida.

  5. Pólvora: Representa a força legítima quando a palavra não mais funciona.

  6. Justiça proporcional: Não é ódio, mas correção em medida adequada, voltada à verdade e ao bem comum.

  7. Interrupção da cadeia: A ação justa rompe a repetição do mal.

  8. Transformação do negativo em positivo: O mal do agressor é devolvido de forma corretiva, restaurando a ordem.

  9. Grandeza da alma: O sujeito age em conformidade com a verdade e com Deus, elevando-se acima da pequenez da vingança.

Notas de Referência

  1. João 1,1: “No princípio era o Verbo (Logos), e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus.”

  2. ULPIANO. Digesto, I, 1, 1: definição clássica de direito como ars boni et aequi.

  3. Declaration of Independence (1776), §2.

  4. PARKER, Geoffrey. The Thirty Years’ War. London: Routledge, 1997.

  5. MATTOSO, José. História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1992, p. 89-91.

  6. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.40, a.1: sobre a guerra justa (de bello iusto).

Bibliografia essencial

  • Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. São Paulo: Paulinas, 2018.

  • AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Frei Leonel Franca et al. São Paulo: Loyola, 2001.

  • AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Trad. J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

  • LOVEJOY, Arthur O. The Great Chain of Being. Cambridge: Harvard University Press, 1936.

  • MATTOSO, José. História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1992.

  • PARKER, Geoffrey. The Thirty Years’ War. London: Routledge, 1997.

  • The Declaration of Independence. Philadelphia, 1776. 

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