Introdução
Quando A pratica uma injustiça contra B, e B responde com outra injustiça, instaura-se uma sucessão de atos que podemos chamar de cadeia negativa do mal. Essa espiral descendente empobrece espiritualmente os envolvidos, revelando a fragilidade da alma diante da tentação da vingança.
Mas o problema não se limita ao plano individual: há situações em que a obstinação de certos grupos ou regimes em conservar apenas o conveniente, ainda que dissociado da verdade, corrói a vida coletiva. Nesses casos, a palavra — destinada a mediar a verdade — é degradada em instrumento de tirania, e o conflito é deslocado para o campo da pólvora.
1. A palavra como ordem e a sua corrupção
A palavra, no plano filosófico e teológico, é expressão do Logos, isto é, da razão que ordena o ser e o conduz à verdade.¹ Por isso, a política e o direito deveriam estar enraizados na palavra verdadeira.
Quando o poder se fecha em conservar apenas o conveniente —e dissociado da verdade —, a palavra é corrompida: em vez de ser instrumento de comunhão, torna-se arma de exclusão e manipulação. O direito, nesse contexto, deixa de ser ars boni et aequi² e passa a ser a “arte de ferrar com os inimigos” segundo os caprichos do falso juiz.
2. O limite da palavra e a irrupção da pólvora
Quando a palavra perde sua função racional e espiritual, a tirania se instaura, e resta apenas a pólvora como último recurso.
Exemplos históricos ilustram essa dinâmica:
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Revolução Americana (1776): após sucessivas petições ao rei Jorge III, pedindo representação no Parlamento, os colonos foram ignorados. O Declaration of Independence justifica a ruptura afirmando que, quando o poder se torna destrutivo da vida e da liberdade, o povo tem o direito de abolir tais formas de governo.³
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Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): começou com a Defenestração de Praga, quando representantes protestantes foram lançados pela janela por ordem imperial.⁴ A obstinação em conservar hegemonias dissociadas da realidade fez da pólvora o árbitro da Europa.
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Ourique (1139): a vitória de D. Afonso Henriques contra os mouros foi precedida de um milagre, no qual Cristo lhe apareceu.⁵ A pólvora (a espada medieval) tornou-se legítima porque a palavra já não encontrava espaço diante da obstinação islâmica em conservar a tirania dissociada da verdade do Evangelho.
3. Justiça, vingança e caridade
3.1 Vingança: perpetuação da pequenez
Quando alguém revida movido pelo ódio ou ressentimento, mantém-se preso à cadeia negativa do mal:
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Encolhe a alma, porque substitui a razão e a justiça pela impulsividade.
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Perpetua a desordem, criando espirais intermináveis de conflito e de silêncio.
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Confunde justiça com autopreservação, pois o mal é respondido pelo mal em nome do próprio interesse ou orgulho ferido.
3.2 Justiça: ruptura da cadeia negativa
Quando a resposta ao mal é fundada na verdade e no bem comum, mesmo que se precise recorrer à força, os efeitos são opostos:
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Eleva a alma, porque a ação é medida, não impulsiva, e ordenada à verdade e a Deus.
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Restaura a ordem, impedindo que o mal se perpetue.
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Transforma o negativo em positivo, na medida em que a resposta correta ao mal não é mero revide, mas correção e preservação do bem maior.
A pólvora, nesse contexto, não é instrumento de ódio, mas de sanção pedagógica, mostrando ao agressor que a desordem instaurada não é compatível com a verdade nem com a justiça.⁶
4. Da grandeza da alma diante da justiça
A alma que paga o mal com o mal encolhe; mas a alma que responde ao mal com a justiça verdadeira — ainda que, em último caso, com a força — se engrandece, porque age em conformidade com a verdade, não pelo ressentimento.
A verdadeira grandeza da alma reside em saber:
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Quando perseverar na palavra;
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Quando ceder à misericórdia;
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Quando, em último caso, aceitar que a pólvora seja instrumento da justiça fundada em Deus.
Assim, a justiça interrompe a cadeia negativa do mal e transforma o negativo em positivo, enquanto a vingança perpetua a decadência do ser.
Fluxo Conceitual: Da maldade à grandeza da alma
[1] Mal praticado por A contra B
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[2] Resposta humana comum: Mal devolvido (Vingança)
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Cadeia negativa do mal
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[3] Obstinação do conservantista em preservar apenas o conveniente
│ Dissociação da verdade
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[4] Palavra corrompida / diálogo esgotado
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[5] Último recurso: Pólvora (força legítima / bellum iustum)
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[6] Justiça proporcional, fundanda na verdade e na caridade
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[7] Interrupção da cadeia negativa do mal
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[8] Transformação do negativo em positivo
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[9] Grandeza da alma: ação ordenada à verdade e a Deus
Explicação do Fluxo
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Mal praticado: A injustiça inicial desencadeia a reação humana.
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Vingança: A resposta movida por ódio perpetua a cadeia negativa.
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Obstinação conservantista: Quando o poder busca conservar apenas conveniências, a palavra perde seu efeito.
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Palavra corrompida: O diálogo e a argumentação são inúteis; a injustiça se consolida.
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Pólvora: Representa a força legítima quando a palavra não mais funciona.
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Justiça proporcional: Não é ódio, mas correção em medida adequada, voltada à verdade e ao bem comum.
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Interrupção da cadeia: A ação justa rompe a repetição do mal.
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Transformação do negativo em positivo: O mal do agressor é devolvido de forma corretiva, restaurando a ordem.
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Grandeza da alma: O sujeito age em conformidade com a verdade e com Deus, elevando-se acima da pequenez da vingança.
Notas de Referência
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João 1,1: “No princípio era o Verbo (Logos), e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus.”
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ULPIANO. Digesto, I, 1, 1: definição clássica de direito como ars boni et aequi.
-
Declaration of Independence (1776), §2.
-
PARKER, Geoffrey. The Thirty Years’ War. London: Routledge, 1997.
-
MATTOSO, José. História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1992, p. 89-91.
-
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.40, a.1: sobre a guerra justa (de bello iusto).
Bibliografia essencial
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Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. São Paulo: Paulinas, 2018.
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Frei Leonel Franca et al. São Paulo: Loyola, 2001.
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AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Trad. J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
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LOVEJOY, Arthur O. The Great Chain of Being. Cambridge: Harvard University Press, 1936.
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MATTOSO, José. História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1992.
-
PARKER, Geoffrey. The Thirty Years’ War. London: Routledge, 1997.
-
The Declaration of Independence. Philadelphia, 1776.
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