Diálogo na Resseita Federal: Conselheiro encontra o Auditor Supremo
No calor sufocante de Brasília, Antônio Conselheiro adentra o templo moderno do Estado absoluto. Entre painéis de vidro, luzes frias e filas intermináveis, ele se depara com o que só poderia ser descrito como o altar sagrado da Resseita Federal. À sua frente, um auditor de terno impecável — o sacerdote máximo da liturgia tributária — ergue a cabeça e sorri com a autoridade de quem domina destinos financeiros.
Conselheiro: — Bendito seja o Senhor, mas que estranhos rituais são estes? Aqui não se fala de Deus, nem se vê igreja, e, ainda assim, todos se curvam como fiéis diante de um altar invisível.
Auditor: — Senhor Conselheiro, aqui seguimos a palavra da Receita. Todos declaramos, todos obedecemos. Quem vacila, sofre as penas previstas. Não há salvação fora do cumprimento das normas.
Conselheiro: — Normas, dizes? E quem as escreveu? Será que o próprio Cristo sancionou estas regras, ou é apenas um homem invisível, que observa de cima, mas jamais se revela?
Auditor: — Não importa quem as escreveu. Importa que sejam obedecidas. Aqui, o fiel confessa seus rendimentos, oferece suas contribuições e cumpre o ritual anual de submissão. O arrependimento financeiro é aceito somente mediante pagamento ou retificação.
Conselheiro olha em volta. Vê devotos ajoelhados diante de telas de computador, tocando telas sensíveis como se fossem relicários, digitando números com o fervor de quem recita orações antigas. Ele sorri ironicamente.
Conselheiro: — Então este Estado, que chamei de seita do anticristo, multiplicou-se em templos e sacerdotes. Mas percebo que a liturgia não se faz com espadas, nem com fogo. A penitência é fria, silenciosa, digital. O pecado é monetário, e a absolvição depende de cliques e transferências.
Auditor: — Exato. Aqui, o pecado é o atraso, o descumprimento, a omissão. Nosso deus é a lei, nosso templo é o sistema, nosso altar são os boletos.
Conselheiro suspira, e em seus olhos brilha uma mistura de desdém e humor:
Conselheiro: — Pois bem. Se esta é a seita, então os brasileiros são fiéis sem fé, devotos sem devoção, hereges por natureza, e eu, apenas um observador curioso. Mas queiram ou não, este é o caminho que nos leva ao céu do Estado absoluto — um céu de números, códigos e multas intermináveis. Um verdadeiro inferno!
O auditor sorri novamente, satisfeito. Afinal, na Resseita Federal, todos os caminhos levam ao mesmo destino: obediência completa, sem questionamentos, sem tréguas, sem misericórdia. O templo do Estado, agora virtual e digital, jamais dorme.
Comentários:
Se Antônio Conselheiro, no sertão baiano do final do século XIX, enxergava a República como uma seita anticristã, onde tudo estava subordinado ao Estado e nada existia fora dele ou contra ele, podemos imaginar que, nos dias de hoje, sua visão seria ainda mais certeira. Pois se a República é a seita-mãe, a Receita Federal surge como sua ramificação ritualística, quase como uma segunda seita federal — ou, para efeito de sátira, a “Resseita Federal”.
A Resseita Federal possui seus dogmas: declaração de renda, pagamento de tributos, emissão de notas fiscais, cumprimento de obrigações acessórias. Quem não se submete a esses ritos é imediatamente classificado como herege econômico, sujeito a punições que variam de multas a processos. Cada cidadão é, portanto, um devoto involuntário, obrigado a obedecer às normas como quem segue preceitos religiosos.
Assim como nas seitas históricas que Conselheiro estudou, a Resseita Federal cultua a autoridade suprema de seus sacerdotes burocráticos. Auditores e fiscais exercem funções quase sacerdotais: interpretam os livros sagrados das normas fiscais, aplicam penitências financeiras e, em casos graves, excomungam temporariamente os fiéis do paraíso tributário — bloqueando contas, suspendendo CPF, ou confiscando bens.
E não faltam rituais que lembram cerimônias religiosas: o envio anual da declaração de IR é como uma oferenda coletiva, com horários sagrados de abertura e fechamento, horários de “confissão” de gastos e rendas, e um temor ritualizado do “espírito” que ronda os sistemas online, pronto para punir qualquer deslize.
No fundo, a Resseita Federal não difere muito das seitas que Conselheiro denunciava: ela afirma sua onipotência, define a moralidade de cada ato (no caso, financeiro) e exige fidelidade absoluta. A diferença é que, enquanto no sertão os fiéis podiam optar pelo isolamento ou pela fuga para outra comunidade, no Brasil contemporâneo ninguém escapa: todos participam da liturgia tributária, quer queiram, quer não.
Portanto, se Antônio Conselheiro tivesse a oportunidade de conhecer os tempos modernos, talvez fizesse um desvio de sua peregrinação sertaneja para visitar os templos da Resseita Federal, onde, entre guichês e declarações online, ele veria que a seita do Estado absoluto encontrou uma forma particularmente eficaz de perpetuar seu domínio: sem espadas, sem fogo, mas com impostos e sistemas de fiscalização.
E nós, meros mortais, seguimos o rito, confiando que, enquanto mantivermos nossas obrigações em dia, continuaremos devotos — e não hereges — da seita que nos observa de cima, invisível, mas sempre presente.
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