Um dos pontos centrais da crítica de Olavo de Carvalho à modernidade política foi a perda da função da Igreja Católica como formadora de elites. Não se trata apenas de formar clérigos ou fiéis piedosos, mas sobretudo de preparar os melhores homens da sociedade — intelectuais, estadistas, artistas, professores, pais de família — que sirvam de modelo de virtude para os demais¹.
A função da elite virtuosa
Na Cristandade medieval, a elite não era apenas a camada rica ou poderosa, mas sim a mais capaz de orientar o corpo social. Isso porque a noção de “nobreza” estava ligada à ideia de serviço, dever e sacrifício. Um cavaleiro ou um rei eram julgados pela medida de sua justiça e de sua fidelidade a Deus, não apenas pela extensão de suas posses².
A Igreja tinha, assim, um papel civilizatório: instruía as elites na doutrina, fornecia parâmetros de moralidade, e estabelecia exemplos de excelência humana por meio de santos, doutores e pastores. Esse modelo podia ser imitado pelas demais camadas da sociedade, de modo que se criava um círculo virtuoso: o exemplo elevado das elites instruídas pela Igreja irradiava virtude para o povo, e este, por sua vez, reforçava o respeito e a autoridade moral daquelas³.
O problema da separação radical entre Igreja e Estado
Quando a Igreja é afastada da vida pública, perde-se o elemento responsável por formar e sustentar essa elite virtuosa. O espaço que deveria ser ocupado por valores transcendentes é preenchido por ideologias políticas, interesses de poder ou, em casos extremos, por uma religião secularizada que se manifesta na adoração do próprio Estado⁴.
O Estado, sem um freio transcendente, tende a absolutizar-se. Esse processo já havia sido denunciado por Santo Tomás de Aquino, ao afirmar que a lei humana só é legítima se estiver em conformidade com a lei natural e a lei divina; fora disso, degenera em tirania⁵.
O Estado como religião secular
Ao se converter em substituto da Igreja, o Estado passa a ocupar todos os espaços da vida. Como alertou Eric Voegelin, esse processo é marcado pela “immanentização do eschaton”: a tentativa de realizar dentro da história e da política aquilo que, por natureza, pertence ao domínio escatológico e divino⁶.
Daí surgem os sintomas do totalitarismo moderno, sintetizados na fórmula jacobina e fascista:
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Nada fora do Estado — tudo, da educação à família, deve ser controlado ou supervisionado pela máquina estatal.
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Nada contra o Estado — qualquer resistência ou oposição é vista como traição⁷.
Esse quadro é a inversão do modelo cristão: em vez de formar elites para servir ao bem comum à luz de Deus, o Estado cria uma pseudo-elite tecnocrática ou ideológica, que serve apenas à perpetuação do próprio poder.
A consequência prática
Sem a Igreja como referência, a elite degenera em oligarquia ou plutocracia. Não há mais uma medida de virtude objetiva, mas apenas de eficácia técnica ou acumulação de riqueza. O mal penetra, como diria Olavo, “onde o bem não é semeado”⁸.
Por isso, o problema não é apenas moral ou religioso, mas político no mais alto sentido: uma sociedade que não forma elites virtuosas estará sempre à mercê de ideologias que absolutizam o Estado. O resultado inevitável é a perda da liberdade e da dignidade humana, pois o homem deixa de ser visto como imagem de Deus e passa a ser tratado como mero recurso ou número estatístico.
Conclusão
A separação radical entre Igreja e Estado, ao contrário do que muitos pensam, não garante neutralidade, mas cria um vazio moral que o Estado acaba preenchendo de modo tirânico.
A Igreja, ao formar elites virtuosas, fornece ao corpo social um parâmetro objetivo de bem, verdade e justiça. Quando esse papel é abandonado, o Estado se torna religião, e a política, idolatria.
Somente a restauração do papel da Igreja como educadora e guia espiritual das elites poderá devolver à sociedade homens capazes de servir de modelo nos méritos de Cristo e, assim, reconstruir uma vida pública ordenada à verdade e à liberdade.
Notas de Rodapé
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Cf. Olavo de Carvalho, O Imbecil Coletivo (São Paulo: É Realizações, 1996), especialmente os capítulos sobre a degradação da cultura e da elite intelectual brasileira.
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Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval (Lisboa: Estampa, 1984), p. 113-145.
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Christopher Dawson, A Formação da Cristandade (São Paulo: Ecclesiae, 2014).
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Joseph Ratzinger (Bento XVI), Sem a Igreja não há salvação (São Paulo: Loyola, 2005).
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Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 95, a. 2: “Uma lei humana que se afasta da lei natural já não será lei, mas corrupção da lei”.
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Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política (São Paulo: É Realizações, 2012), p. 147-153.
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Benito Mussolini, La Dottrina del Fascismo (1932): “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado.”
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Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições (Rio de Janeiro: Diadorim, 1995).
Bibliografia
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica.
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CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. São Paulo: É Realizações, 1996.
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CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995.
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DAWSON, Christopher. A Formação da Cristandade. São Paulo: Ecclesiae, 2014.
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LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984.
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MUSSOLINI, Benito. La Dottrina del Fascismo. 1932.
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RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Sem a Igreja não há salvação. São Paulo: Loyola, 2005.
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VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. São Paulo: É Realizações, 2012.
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