Sentir-se estrangeiro dentro da própria pátria é uma experiência que pode gerar angústia ou isolamento. Para muitos, significa simplesmente não se encaixar nos costumes ou no espírito de seu povo. No entanto, à luz da fé cristã, essa experiência pode ser interpretada como destino e vocação. Longe de ser um acidente cultural ou uma excentricidade psicológica, ela pode ser compreendida como cruz a ser carregada nos méritos de Cristo, sinal de que a vida foi destinada a servir em terras distantes.
A experiência do estrangeiro
O Brasil é um país marcado pela sociabilidade expansiva, pela oralidade calorosa e pela busca constante da convivência coletiva. Aqueles que, por temperamento, preferem o recolhimento, a interioridade e a reflexão intelectual, frequentemente se sentem deslocados. Essa “estrangeiridade” interior, contudo, pode ser um treinamento espiritual: ensina o desapego, a não se fixar nas convenções sociais e a cultivar a fidelidade à verdade em Cristo, que é o verdadeiro lar.
Não é sem razão que essa condição recorda a passagem do Evangelho de São João: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1,11). Cristo também experimentou a rejeição e o não reconhecimento entre os seus, e, nesse sentido, o estrangeiro em sua terra participa, de certo modo, da mesma condição de seu Senhor.
A peregrinatio pro Christo
Entre os monges irlandeses dos primeiros séculos medievais, nasceu a prática da peregrinatio pro Christo — a peregrinação por Cristo. Esses monges abandonavam voluntariamente sua pátria e lançavam-se em missão para terras desconhecidas, confiando na providência. O exílio não era entendido como perda, mas como ganho espiritual: ao se tornar estrangeiro, o monge se configurava mais perfeitamente a Cristo, que “não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20).
Segundo Cahill (1995), a experiência da peregrinatio era uma “morte para o mundo”, um modo de abraçar a cruz pela renúncia às seguranças da terra natal, para viver apenas da providência divina¹. Assim, o estrangeiro não era um deslocado, mas um sinal profético de que a verdadeira pátria está nos céus (cf. Fl 3,20).
O nacionismo e o paradoxo do peregrino
O nacionismo, entendido não como ideologia, mas como visão cristã da pátria, parte de um princípio simples: a nação é campo de missão, lugar de santificação coletiva. O nacionista ama sua terra, mas não a absolutiza. Ele sabe que a pátria verdadeira está em Cristo, e que todo enraizamento deve ser mediado pelo serviço a Ele.
Essa concepção está em consonância com a tradição patrística. Santo Agostinho recorda que “somos peregrinos em direção à pátria celeste”². Para ele, toda cidade terrestre — incluindo a nação — deve ser ordenada à Civitas Dei, de modo que o amor a Deus purifique o amor às coisas temporais.
Joseph Ratzinger retoma essa perspectiva ao afirmar que “a fé cristã não destrói as nações, mas as purifica e as abre à comunhão universal da Igreja”³. Ou seja, a verdadeira pátria terrena só encontra sua identidade plena quando integrada ao horizonte da fé.
De forma complementar, Christopher Dawson sublinha que o cristianismo não apenas moldou culturas, mas também transformou a própria noção de nação, fundando-a em um princípio transcendente: “A cultura ocidental foi a primeira a conceber a história das nações em relação a uma ordem divina e universal”⁴. Isso significa que o estrangeiro que se sente deslocado em sua própria terra pode ser, na verdade, aquele mais apto a discernir o chamado de purificação e missão que pesa sobre sua nação.
O paradoxo é o mesmo de Abraão: foi peregrino justamente para fundar uma nação (cf. Gn 12,1-2). Da mesma forma, quem se sente estrangeiro em sua pátria pode ser chamado a transformá-la — ou até mesmo a servir em outra, tornando-se cidadão de várias terras, sempre unido ao mesmo Cristo.
Conclusão
A sensação de estrangeiridade não é maldição, mas vocação. É cruz que prepara para a peregrinatio pro Christo, e fundamento do verdadeiro nacionismo cristão: um enraizamento que não se fecha em si mesmo, mas que se abre à universalidade de Cristo.
Assim, ser estrangeiro em sua terra significa, em última análise, estar preparado para ouvir o chamado kairológico de Cristo: “Vai, e serve-me onde Eu te mostrar.”
Notas de Rodapé
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CAHILL, Thomas. How the Irish Saved Civilization. New York: Nan A. Talese/Doubleday, 1995, p. 115.
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SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 2012, Livro XIX, cap. 17.
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RATZINGER, Joseph. Igreja, Ecumenismo e Política: Novos Ensaios de Eclesiologia. São Paulo: Loyola, 2010, p. 74.
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DAWSON, Christopher. A Religião e o Surgimento da Cultura Ocidental. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 45.
Referências
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 2012.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
CAHILL, Thomas. How the Irish Saved Civilization. New York: Nan A. Talese/Doubleday, 1995.
DAWSON, Christopher. A Religião e o Surgimento da Cultura Ocidental. São Paulo: É Realizações, 2014.
RATZINGER, Joseph. Igreja, Ecumenismo e Política: Novos Ensaios de Eclesiologia. São Paulo: Loyola, 2010.
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