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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A preservação profissional de jogos antigos: um projeto civilizatório, de caráter intergeracional

Introdução

A preservação de jogos antigos vai muito além de um hobby ou de um investimento especulativo. Ela se insere em um projeto civilizatório, no qual a aquisição e manutenção de obras culturais digitais ou físicas se tornam parte de uma estratégia de legado para futuras gerações. Diferente do pensamento utilitário ou fisiológico predominante na mente comum, este projeto é fundado na dimensão temporal e intergeracional, reconhecendo que obstáculos legais, como os direitos autorais, funcionam como barreiras temporárias que podem ser transpostas pelo decurso do tempo.

Propriedade versus licenciamento

Nos formatos digitais contemporâneos, o acesso a jogos muitas vezes é mediado por licenças que limitam direitos do consumidor e impõem dependência de servidores, DRM e políticas corporativas. A mídia física, por outro lado, garante propriedade e controle direto sobre a obra, permitindo que esta seja preservada independentemente de fatores externos. Ao adquirir cartuchos, CDs ou DVDs, o preservador não só se torna proprietário do objeto, mas também garante a continuidade da obra enquanto patrimônio cultural.

O muro dos direitos autorais

Os direitos autorais representam a principal barreira à exploração comercial das obras:

  • Estados Unidos: proteção de 95 anos a partir do lançamento, para obras corporativas¹.

  • Japão: proteção de vida do autor + 70 anos², modelo próximo ao europeu.

  • Brasil: proteção de vida do autor + 70 anos³, conforme o Código Civil e a Lei de Direitos Autorais.

Essa diferença temporal evidencia a necessidade de planejamento intergeracional. Mesmo que o preservador não possa usufruir comercialmente do domínio público durante sua vida, filhos e netos poderão fazê-lo legalmente, transformando a obra em ativo cultural e econômico para futuras gerações.

Projeto econômico como projeto civilizatório

O valor deste empreendimento não se mede apenas pelo retorno financeiro imediato. Um projeto de preservação de jogos antigos é, acima de tudo, civilizatório:

  1. Preserva a memória cultural: jogos são registros históricos e artísticos de uma época, refletindo estéticas, narrativas e tecnologias.

  2. Cria legado intergeracional: a obra preservada torna-se um patrimônio que pode ser explorado legalmente pelos descendentes.

  3. Supera obstáculos legais temporários: tal como uma muralha que bloqueia um caminho, os direitos autorais retardam o acesso comercial; contudo, o decurso do tempo permite que a barreira seja contornada sem infringir a lei.

Cópias pessoais como sementes de futuro

Quando se cria uma cópia de um jogo para uso pessoal ou como backup, está-se realizando mais do que um ato técnico: plantando a semente de uma nova ordem futura.

  • O jogo, enquanto criação intelectual, é equiparado a um invento, protegido temporariamente pelo direito autoral.

  • O direito de punir terceiros por violação é instrumental e limitado no tempo, ligado à proteção da transação e à pretensão punitiva do titular.

A cópia pessoal garante que, quando os direitos temporários expirarem, os descendentes terão acesso seguro e legal ao patrimônio cultural e econômico. Assim, a preservação atual funciona como pedagogia intergeracional, ensinando filhos e netos a sobreviver e atuar legalmente quando o “muro” do direito temporário cair — de forma análoga à sobrevivência à queda do Muro de Berlim, mas no plano do microdireito.

Fundamentos jurídicos e econômicos

O ato de preservar obras e criar cópias pessoais se funda em dois pilares essenciais do direito de propriedade, conforme Hernando de Soto em O Mistério do Capital:

  1. Integração entre pessoas: direitos claros e transmissíveis permitem coordenação e planejamento intergeracional.

  2. Proteção às transações: propriedade e registros asseguram que investimentos culturais e econômicos sejam preservados, garantindo continuidade e valor futuro.

Dessa forma, a preservação não é apenas técnica: é civilizatória, integrando direito, economia e estratégia cultural.

Preservação profissional

Para que o projeto seja sustentável e efetivo, é fundamental aprender a preservar profissionalmente:

  • Manutenção de mídias físicas em condições adequadas.

  • Digitalização e backup seguro das obras.

  • Catalogação detalhada, garantindo acesso futuro.

Somente com essas práticas é possível assegurar que o legado cultural e econômico sobreviva intacto às gerações futuras.

Conclusão

A preservação de jogos antigos, quando planejada de maneira profissional, é uma estratégia que combina respeito à lei, visão intergeracional e valorização cultural. Um projeto civilizatório intergeracional não se mede apenas pelo lucro imediato: ele garante que, quando o direito de privilégio temporário expirar, os descendentes possam acessar, explorar e valorizar o patrimônio de forma legítima. A criação de cópias pessoais hoje funciona como semente da nova ordem, garantindo continuidade cultural, econômica e legal para o futuro.

Notas de Rodapé

  1. Lei de Direitos Autorais dos Estados Unidos: U.S. Copyright Act, 17 U.S.C. § 302(c), proteção de 95 anos a partir da publicação para obras corporativas.

  2. Lei de Direitos Autorais do Japão: Lei nº 48 de 1970 (改正著作権法), proteção de vida do autor + 70 anos, alinhada à Convenção de Berna.

  3. Lei de Direitos Autorais do Brasil: Lei nº 9.610/1998, artigo 41, proteção de vida do autor + 70 anos.

Bibliografia

  • U.S. Copyright Office. Copyright Law of the United States. 2023.

  • Governo do Japão. Copyright Act of Japan. 1970, com alterações recentes.

  • Brasil. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Lei de Direitos Autorais.

  • De Soto, Hernando. O Mistério do Capital. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

  • Lessig, Lawrence. Free Culture: How Big Media Uses Technology and the Law to Lock Down Culture and Control Creativity. Penguin, 2004.

  • Wolf, Mark J. P. The Medium of the Video Game. University of Texas Press, 2001.

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