Introdução
A preservação de jogos antigos vai muito além de um hobby ou de um investimento especulativo. Ela se insere em um projeto civilizatório, no qual a aquisição e manutenção de obras culturais digitais ou físicas se tornam parte de uma estratégia de legado para futuras gerações. Diferente do pensamento utilitário ou fisiológico predominante na mente comum, este projeto é fundado na dimensão temporal e intergeracional, reconhecendo que obstáculos legais, como os direitos autorais, funcionam como barreiras temporárias que podem ser transpostas pelo decurso do tempo.
Propriedade versus licenciamento
Nos formatos digitais contemporâneos, o acesso a jogos muitas vezes é mediado por licenças que limitam direitos do consumidor e impõem dependência de servidores, DRM e políticas corporativas. A mídia física, por outro lado, garante propriedade e controle direto sobre a obra, permitindo que esta seja preservada independentemente de fatores externos. Ao adquirir cartuchos, CDs ou DVDs, o preservador não só se torna proprietário do objeto, mas também garante a continuidade da obra enquanto patrimônio cultural.
O muro dos direitos autorais
Os direitos autorais representam a principal barreira à exploração comercial das obras:
-
Estados Unidos: proteção de 95 anos a partir do lançamento, para obras corporativas¹.
-
Japão: proteção de vida do autor + 70 anos², modelo próximo ao europeu.
-
Brasil: proteção de vida do autor + 70 anos³, conforme o Código Civil e a Lei de Direitos Autorais.
Essa diferença temporal evidencia a necessidade de planejamento intergeracional. Mesmo que o preservador não possa usufruir comercialmente do domínio público durante sua vida, filhos e netos poderão fazê-lo legalmente, transformando a obra em ativo cultural e econômico para futuras gerações.
Projeto econômico como projeto civilizatório
O valor deste empreendimento não se mede apenas pelo retorno financeiro imediato. Um projeto de preservação de jogos antigos é, acima de tudo, civilizatório:
-
Preserva a memória cultural: jogos são registros históricos e artísticos de uma época, refletindo estéticas, narrativas e tecnologias.
-
Cria legado intergeracional: a obra preservada torna-se um patrimônio que pode ser explorado legalmente pelos descendentes.
-
Supera obstáculos legais temporários: tal como uma muralha que bloqueia um caminho, os direitos autorais retardam o acesso comercial; contudo, o decurso do tempo permite que a barreira seja contornada sem infringir a lei.
Cópias pessoais como sementes de futuro
Quando se cria uma cópia de um jogo para uso pessoal ou como backup, está-se realizando mais do que um ato técnico: plantando a semente de uma nova ordem futura.
-
O jogo, enquanto criação intelectual, é equiparado a um invento, protegido temporariamente pelo direito autoral.
-
O direito de punir terceiros por violação é instrumental e limitado no tempo, ligado à proteção da transação e à pretensão punitiva do titular.
A cópia pessoal garante que, quando os direitos temporários expirarem, os descendentes terão acesso seguro e legal ao patrimônio cultural e econômico. Assim, a preservação atual funciona como pedagogia intergeracional, ensinando filhos e netos a sobreviver e atuar legalmente quando o “muro” do direito temporário cair — de forma análoga à sobrevivência à queda do Muro de Berlim, mas no plano do microdireito.
Fundamentos jurídicos e econômicos
O ato de preservar obras e criar cópias pessoais se funda em dois pilares essenciais do direito de propriedade, conforme Hernando de Soto em O Mistério do Capital:
-
Integração entre pessoas: direitos claros e transmissíveis permitem coordenação e planejamento intergeracional.
-
Proteção às transações: propriedade e registros asseguram que investimentos culturais e econômicos sejam preservados, garantindo continuidade e valor futuro.
Dessa forma, a preservação não é apenas técnica: é civilizatória, integrando direito, economia e estratégia cultural.
Preservação profissional
Para que o projeto seja sustentável e efetivo, é fundamental aprender a preservar profissionalmente:
-
Manutenção de mídias físicas em condições adequadas.
-
Digitalização e backup seguro das obras.
-
Catalogação detalhada, garantindo acesso futuro.
Somente com essas práticas é possível assegurar que o legado cultural e econômico sobreviva intacto às gerações futuras.
Conclusão
A preservação de jogos antigos, quando planejada de maneira profissional, é uma estratégia que combina respeito à lei, visão intergeracional e valorização cultural. Um projeto civilizatório intergeracional não se mede apenas pelo lucro imediato: ele garante que, quando o direito de privilégio temporário expirar, os descendentes possam acessar, explorar e valorizar o patrimônio de forma legítima. A criação de cópias pessoais hoje funciona como semente da nova ordem, garantindo continuidade cultural, econômica e legal para o futuro.
Notas de Rodapé
-
Lei de Direitos Autorais dos Estados Unidos: U.S. Copyright Act, 17 U.S.C. § 302(c), proteção de 95 anos a partir da publicação para obras corporativas.
-
Lei de Direitos Autorais do Japão: Lei nº 48 de 1970 (改正著作権法), proteção de vida do autor + 70 anos, alinhada à Convenção de Berna.
-
Lei de Direitos Autorais do Brasil: Lei nº 9.610/1998, artigo 41, proteção de vida do autor + 70 anos.
Bibliografia
-
U.S. Copyright Office. Copyright Law of the United States. 2023.
-
Governo do Japão. Copyright Act of Japan. 1970, com alterações recentes.
-
Brasil. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Lei de Direitos Autorais.
-
De Soto, Hernando. O Mistério do Capital. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
-
Lessig, Lawrence. Free Culture: How Big Media Uses Technology and the Law to Lock Down Culture and Control Creativity. Penguin, 2004.
-
Wolf, Mark J. P. The Medium of the Video Game. University of Texas Press, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário