Resumo
Este artigo propõe uma leitura de Nicolau Maquiavel como o pai da política fundacional, entendendo-a como a origem da política moderna enquanto prática de engenharia social. Ao rejeitar as estruturas fixas do pensamento político medieval e propor uma visão dinâmica e técnica do poder, Maquiavel inaugura um paradigma em que o político é capaz de fundar novas ordens e transformar utopias em realidades possíveis. Essa leitura se relaciona diretamente com noções modernas de “comunidades imaginadas” e com a própria lógica das revoluções políticas posteriores. Ao final, sugere-se que Maquiavel seja não apenas o precursor do realismo político, mas também o engenheiro originário da modernidade política.
1. Introdução
Na tradição clássica, a política era vista como arte da prudência, voltada à manutenção de uma ordem estabelecida — natural ou divina. Com Nicolau Maquiavel (1469–1527), essa concepção sofre uma ruptura radical. Ao invés de preservar, o político passa a ser convocado a fundar. Neste artigo, argumenta-se que Maquiavel deve ser compreendido como pai da política fundacional, entendida aqui como a arte de criar novas ordens sociais mediante a manipulação de forças históricas, símbolos e instituições. Esta prática o aproxima do conceito moderno de engenharia social e inaugura a possibilidade de converter projetos utópicos em realidades concretas.
2. A política como fundação
Em O Príncipe, Maquiavel apresenta a figura do fundador como alguém dotado de virtù, isto é, força, sagacidade e domínio da ocasião (kairós) para transformar a realidade histórica. Como ele escreve:
“A fundação de um Estado novo pressupõe a destruição do anterior.”¹
Em lugar da ordem eterna e estável proposta pela escolástica medieval, Maquiavel apresenta o mundo como instável, sujeito ao movimento cíclico da fortuna, que deve ser dominada pelo agente político. Em sua análise dos fundadores (Rômulo, Moisés, Teseu), está implícita a admiração por aqueles que souberam forjar comunidades estáveis do caos inicial. Essa fundação não é espontânea nem orgânica: ela requer arte, violência, cálculo.
3. Da prudência à engenharia social
Ao conferir à política esse caráter fundacional e técnico, Maquiavel antecipa a noção moderna de engenharia social. Tal termo, em sua origem, refere-se à aplicação de técnicas sociológicas e psicológicas para organizar sociedades de acordo com fins desejados². Contudo, já em Maquiavel vemos a estruturação do político como agente que modela o social com base em princípios utilitários, e não transcendentais.
A célebre recomendação maquiavélica de que “os fins justificam os meios” não é um convite ao cinismo, mas ao realismo: é a consciência de que a política é regida por sua própria lógica, e não pela moralidade privada³. O governante eficaz deve saber, portanto, manipular as aparências, os afetos coletivos, os ritos públicos — elementos centrais também à engenharia social moderna.
4. Da utopia à comunidade imaginada
Embora Maquiavel não seja um utopista nos moldes de Thomas More, ele fornece as ferramentas para que utopias se tornem possíveis. Ao retirar da política sua base metafísica e inseri-la no campo da técnica e da vontade, ele permite que projetos antes considerados fantasiosos (como o Estado-nação, a república igualitária, a sociedade sem classes) possam ser implementados mediante ação estratégica.
Esse deslocamento do impossível ao possível encontra eco na obra de Benedict Anderson, Imagined Communities, ao afirmar que as nações modernas são comunidades imaginadas — criações culturais e políticas que se tornam reais por meio de instituições e narrativas compartilhadas⁴. Maquiavel antecipa esse processo ao propor que os fundadores moldam a realidade não como ela é, mas como deve parecer ser, para que funcione.
5. A política como técnica: o legado de Maquiavel
O impacto de Maquiavel é visível ao longo da modernidade. Hobbes, Rousseau, Napoleão, Lenin — todos, de algum modo, seguem a linha do “fundador de ordens”. Mesmo os regimes democráticos liberais empregam técnicas de engenharia social (educação pública, propaganda, arquitetura institucional) que estão em consonância com o princípio maquiavélico de que o poder precisa dar forma ao social.
Como afirma Isaiah Berlin:
“Foi Maquiavel quem primeiramente concebeu o Estado como uma obra de arte do homem, e não de Deus.”⁵
É exatamente neste ponto que Maquiavel deixa de ser apenas o pensador do poder e passa a ser o engenheiro do possível — aquele que ensinou como se transforma o mundo não com princípios eternos, mas com ações eficazes.
Conclusão
Ler Maquiavel como pai da política fundacional e precursor da engenharia social permite compreender a transição da política como ética à política como técnica. Ele nos mostra que a construção de novas realidades sociais — mesmo utópicas — é possível quando se abandona a ingenuidade moral e se adota a ação estratégica. Seu legado permanece vivo em todos os projetos que buscam transformar a sociedade a partir de uma visão, por mais imaginária que ela seja. Nesse sentido, Maquiavel é o autor que melhor soube converter o impossível em possível — não por fé, mas por arte.
Referências Bibliográficas
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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
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POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia, 1974.
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SKINNER, Quentin. Maquiavel. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: UNESP, 1996.
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ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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BERLIN, Isaiah. O Pensamento Político de Maquiavel. In: O ouriço e a raposa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Notas de Rodapé
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MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. Maria Lúcia Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 41.
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Cf. POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, op. cit., vol. 1, especialmente o capítulo sobre Platão como precursor da engenharia social utópica.
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MAQUIAVEL, O Príncipe, op. cit., cap. XV–XVIII.
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ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas, op. cit., p. 14–15.
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BERLIN, Isaiah. O Pensamento Político de Maquiavel, op. cit., p. 168.
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