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quarta-feira, 11 de junho de 2025

Penas de Caráter Perpétuo: um estudo comparado entre Brasil e Argentina

A discussão sobre penas de caráter perpétuo é central para qualquer reflexão sobre os limites do poder punitivo do Estado moderno. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é clara ao proibir expressamente tais penas, conforme disposto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea "b": “nao haverá penas de caráter perpétuo”. Na Argentina, por outro lado, o ordenamento jurídico admite expressamente certas penas com esse caráter, especialmente no que diz respeito à inabilitação para o exercício de cargos públicos.

Contudo, mesmo no Brasil, onde tais penas são formalmente vedadas, existe o que a doutrina denomina “perpetuidade imprópria”: situações em que a pena, embora determinada por tempo certo, torna-se na prática perpétua, seja por razões biológicas (como a idade avançada do condenado), seja por efeitos colaterais da pena (como a impossibilidade fática de reingresso no mercado de trabalho ou no serviço público).

Na Argentina, o Código Penal prevê, por exemplo, a inabilitação especial perpétua como pena acessória em casos de corrupção administrativa, fraudes e outros delitos graves. Um caso recente de grande repercussão foi a condenação da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que recebeu, além de pena de prisão, a inabilitação perpétua para o exercício de cargos públicos, confirmada pela Suprema Corte argentina em 2025.

Essa diferença entre os dois ordenamentos levanta questões fundamentais: Será que a vedacão constitucional brasileira às penas de caráter perpétuo impede, de fato, a existência de efeitos penais que se estendam por toda a vida do condenado? E mais: haveria espaço para uma interpretação que limite os efeitos das penas acessórias quando estas se mostrarem desproporcionais ou claramente irreversíveis?

Na prática, o Brasil convive com institutos como a prisão por até 40 anos (desde a Lei nº 13.964/2019), reclusões prolongadas de idosos e medidas de segurança por tempo indeterminado para inimputáveis considerados perigosos. Além disso, certas penas acessórias, como a perda de cargo ou função pública, não possuem um prazo de reversão automática, ficando condicionadas à reabilitação judicial.

Essa realidade desafia o ideal normativo da proibição de penas perpétuas e nos obriga a refletir sobre a coerência entre o princípio constitucional e os efeitos concretos das sentenças penais. Se a pena, embora limitada no código, perpetua-se na vida do condenado de modo fático, então estamos diante de uma contradição entre a letra da lei e sua execução.

Comparativamente, a Argentina assume de maneira frontal essa possibilidade punitiva: a lei prevê e aplica a inabilitação perpétua como forma de proteção do interesse público e da moralidade administrativa. Isso confere maior coerência entre o texto legal e a prática judicial, embora abra discussão sobre proporcionalidade e ressocialização.

O estudo comparado revela, portanto, que o problema não está apenas na existência formal de penas perpétuas, mas na efetividade dos princípios constitucionais diante das condições concretas da execução penal. Resta ao jurista brasileiro enfrentar a tensão entre norma e realidade e construir soluções que respeitem a dignidade humana sem abrir mão da responsabilização por delitos graves.

A perpetuidade, portanto, não está apenas no código penal: muitas vezes, ela está na vida do condenado. E isso é um problema que o direito não pode ignorar.

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