A cegueira denunciada por Saramago em Ensaio sobre a cegueira pode parecer literária, mas é de fato profundamente realista. A modernidade padece de uma cegueira voluntária — não de olhos que não podem ver, mas de vontades que se recusam a enxergar. E essa cegueira tem consequências políticas, culturais e espirituais devastadoras: a substituição da descoberta do outro pelo seu encobrimento, e da comunidade real pela comunidade imaginada.
É este o ponto nodal entre a crítica de Enrique Dussel e o alerta de Gustavo Corção. O primeiro, em 1492: o Encobrimento do Outro, afirma que o projeto de colonização ibérica transformou o ato de descobrir em ato de dominar, reduzindo o outro a um objeto a ser manipulado e, por isso mesmo, invisibilizado. Esse encobrimento tornou-se um padrão civilizacional que, ao ser globalizado, deixou raízes profundas no imaginário contemporâneo¹.
Mas essa crítica, se deixada ao nível da luta entre culturas ou classes, corre o risco de gerar outra forma de encobrimento: o de Cristo como fundamento da verdade e da caridade. Servir a Cristo em terras distantes, tal como apontado no milagre de Ourique, implica descobrir o outro à luz de Deus, não substituí-lo por mitologias ideológicas.
Gustavo Corção, por sua vez, chamava esse processo de desordem generalizada de "o desconcerto do mundo". Segundo ele: "É o mundo mesmo que está errado, e a desordem que nele impera nos fere como um espinho que não conseguimos tirar. O desconcerto é a dor de ver tudo fora de lugar — inclusive nós mesmos"².
Esse diagnóstico converge com a percepção do horror metafísico, tal como formulado por Leszek Kołakowski, para quem a modernidade perdeu a confiança em qualquer fundamento último da realidade. No lugar da verdade revelada, multiplicaram-se ideologias, subjetivismos e sistemas. O resultado? Uma civilização sem raízes, onde tudo é substituível — inclusive o outro³.
Essa substituição se consolida pela invenção das tradições, como denuncia Eric Hobsbawm. O que se apresenta como herança legítima é, muitas vezes, uma fabricação recente, instrumentalizada por interesses de poder. É assim que se formam as chamadas comunidades imaginadas, tal como analisadas por Benedict Anderson — agrupamentos baseados em vínculos artificiais, forjados por mitos nacionalistas, ressentimentos e narrativas manipuladas⁴.
No Brasil, essa lógica de encobrimento toma formas cada vez mais grotescas. Fabricam-se quilombos falsos, para transformar terras em laboratórios ideológicos; reescreve-se a história para afirmar absurdos como a ideia de que o Brasil colonizou Portugal; inventam-se identidades que nada têm de vivência real. Tudo isso sob a bandeira de uma “diversidade” que, no fundo, apenas mascara um projeto de homogeneização ideológica. Como nos adverte Kołakowski, “o pluralismo relativista é frequentemente o cavalo de Troia do totalitarismo cultural”⁵.
Em suma, o encobrimento do outro não é apenas um erro ético ou histórico: é um pecado contra o Logos, contra a ordem do real e da caridade. É uma forma de cegueira espiritual, que conduz ao desconcerto do mundo e ao colapso da cultura.
A única resposta verdadeira a esse processo é a descoberta do outro em Cristo — ou seja, enxergar o outro não como adversário ou estereótipo, mas como imagem e semelhança de Deus, passível de ser amado e redimido. Como afirma o Concílio Vaticano II:
“Na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (...) Cristo, novo Adão, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sublimidade da sua vocação”⁶.
Portanto, a tarefa que se coloca a quem deseja servir a Cristo é clara: desfazer o encobrimento, recusar as falsas tradições, romper com as comunidades imaginadas, e recuperar a realidade concreta, revelada e sofrida — especialmente a dor do outro, que nos remete à dor de Cristo. Só assim poderá cessar o desconcerto do mundo, e reinar a ordem da verdade, da liberdade e da comunhão.
Notas de rodapé
DUSSEL, Enrique. 1492: o Encobrimento do Outro. Rumo a uma origem do mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
CORÇÃO, Gustavo. O Desconcerto do Mundo. Rio de Janeiro: Agir, 1971, p. 211.
KOŁAKOWSKI, Leszek. O Horror Metafísico. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997; ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
KOŁAKOWSKI, Leszek. O Horror Metafísico, op. cit.
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes, n. 22.
Referências bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. Rio de Janeiro: Agir, 1968.
CORÇÃO, Gustavo. O Desconcerto do Mundo. Rio de Janeiro: Agir, 1971.
DUSSEL, Enrique. 1492: o Encobrimento do Outro. Rumo a uma origem do mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
KOŁAKOWSKI, Leszek. O Horror Metafísico. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. In: Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2004.
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