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quinta-feira, 12 de junho de 2025

Gratuidade, dívida moral e averbação patrimonial: a doutrina do cashback ético

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre os efeitos patrimoniais das gratuidades fundadas em dívida moral. Defende-se que o valor de mercado da coisa doada, mesmo perecível, representa acréscimo real ao patrimônio e, por isso, deve ser averbado sob forma simbólica — como um "cashback ético". O trabalho se fundamenta em uma articulação entre categorias jurídicas, morais e econômicas, apoiando-se na tradição clássica da justiça e da reciprocidade.

Palavras-chave: Gratuidade; Patrimônio; Dívida moral; Cashback; Averbação.

1. Introdução

É comum tratar a gratuidade como simples ausência de custo monetário. No entanto, há casos em que a gratuidade, embora não vinculada por obrigação jurídica, se funda em uma motivação moral: a retribuição voluntária por um bem recebido ou reconhecido. Neste contexto, este artigo desenvolve a tese de que tal gratuidade representa um acréscimo patrimonial real e mensurável, que deve ser tratado à luz do valor de mercado do bem doado, à maneira de um cashback moral.

2. Gratuidade e sua natureza jurídica e moral

No direito civil brasileiro, a doação é definida como um contrato em que uma das partes se obriga, por liberalidade, a transferir bens ou vantagens a outra, sem exigir contraprestação^1^. A ausência de obrigação jurídica não significa, no entanto, ausência de vínculo. Como explica Santo Tomás de Aquino:

“Devemos dar gratuitamente, não como quem é obrigado pela justiça, mas como quem é movido pela caridade”^2^.

Essa distinção permite perceber que dívidas morais, embora não judicialmente exigíveis, podem motivar ações concretas — como uma doação em reconhecimento de lealdade, exemplo ou ajuda anterior.

3. O valor de mercado como forma de cashback moral

Quando alguém recebe um bem gratuitamente — por exemplo, um livro, um almoço, um serviço técnico —, ele preserva recursos que, de outra forma, teria de gastar. Ainda que a doação tenha sido espontânea, seu valor de mercado representa uma forma de reembolso simbólico, por méritos reconhecidos moralmente. Isso pode ser interpretado como um "cashback moral", pois, nos termos de Josiah Royce:

“A lealdade exige que tomemos como nossas as causas às quais nos dedicamos — e essa dedicação gera retorno, ainda que não em moeda”^3^.

4. Averbação patrimonial mesmo em bens perecíveis

O bem recebido pode ser consumível ou perecível (alimento, ingresso, carona, etc.). Ainda assim, gera acréscimo patrimonial no instante do recebimento, mesmo que esse valor se dissolva no consumo.

Do ponto de vista econômico e ético, deve-se registrar — ainda que simbolicamente — o valor correspondente. Segundo Leão XIII:

“É necessário que o trabalho humano produza capital. E este capital não é apenas monetário, mas também intelectual e moral”^4^.

Logo, o recebimento gratuito de um bem fundado em dívida moral deve ser averbado ao patrimônio ético do indivíduo, pois representa parte desse capital moral e material.

5. Conclusão

Gratuidade não é ausência de valor. Quando fundada em dívida moral, a dádiva gratuita representa um acréscimo simbólico e real ao patrimônio do receptor. Esse valor, mesmo se consumido, configura o que aqui se propõe chamar de cashback ético. Em tempos de corrupção material e descuido moral, cultivar uma contabilidade interior — fundada na justiça, na gratidão e na verdade — torna-se um gesto de fidelidade à ordem do real.

Referências

^1^ DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. v. 3, p. 88.

^2^ AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001. IIa IIae, q. 32, a. 5.

^3^ ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908. p. 62.

^4^ LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Acesso em: 12 jun. 2025.

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