Resumo
Este artigo investiga o conceito de colônia presente no Vocabulário Português e Latino de Rafael Bluteau, relacionando-o ao ideal português de povoamento e missão cristã nos tempos do Antigo Regime. Argumenta-se que a colonização não era, na concepção lusa, mero exercício de posse territorial ou exploração econômica, mas uma empresa de civilização ordenada segundo os princípios da fé católica. Fundar povoações, distribuir sesmarias e estabelecer missões religiosas são apresentados como os três pilares de uma empresa colonial bem-sucedida. Conclui-se que aprimorar a liberdade dos povos, entendida como adesão voluntária à ordem divina, constitui uma forma de governo e uma extensão prática da missão espiritual da Coroa portuguesa.
1. Introdução
A historiografia moderna frequentemente lê a colonização portuguesa pelos filtros do imperialismo, do extrativismo e da opressão. Entretanto, se interrogarmos as fontes do próprio período, como o Vocabulário Português e Latino de Rafael Bluteau (1712-1728), veremos que o conceito de colônia está profundamente associado ao ideal de povoamento, de cultivo e de santificação. No contexto do Antigo Regime, colonizar significava integrar um território à ordem espiritual e social cristã por meio do trabalho, da fundação de povoações e da propagação da fé.
2. O conceito de colônia segundo Rafael Bluteau
No verbete "Colônia", Bluteau define:
"Colônia. Chamamos assi a uma porção de terra, que se cultiva e povoa, com ânimo de nela se fazer morada e nela se estabelecer. Chamam-se também colônias as povoações feitas por quem se muda de uma terra para outra, para nela se ocupar de lavouras e criar novo estabelecimento, fundado na cultura do solo e na criação." (BLUTEAU, 1712, p. 479).
O autor prossegue estabelecendo que a colônia pressupõe não apenas o deslocamento, mas o estabelecimento de uma atividade econômica estável e organizada, centrada sobretudo na agricultura, considerada a base da riqueza e da ordem social no mundo cristão do Antigo Regime.
Trata-se, portanto, de um conceito orgânico e teleológico, em que o cultivo da terra não é fim em si mesmo, mas um meio de realizar a vocação humana de transformar o caos em ordem, de dominar a natureza segundo os desígnios do Criador (Gn 1,28).
3. O tripé da empresa colonial cristã
O êxito de uma empresa colonial portuguesa estava ancorado em três elementos fundamentais:
3.1. Fundação de povoações
O povoamento não era simples ocupação geográfica, mas a instalação da civilização cristã num território. De acordo com José de Anchieta, em sua Carta sobre a missão do Brasil,
"Não viemos a estas partes só para batizar, mas também para fazer delas terras de cristãos, onde floresça a fé, a justiça, o trabalho e a boa ordem." (ANCHIETA, 1560, p. 12).
A fundação de vilas, cidades e freguesias representava a concretização da presença da Coroa e da Igreja, garantindo a administração dos sacramentos, a manutenção da lei e a estruturação econômica do território.
3.2. Concessão de sesmarias
A política de sesmarias destinava-se a estimular a ocupação produtiva da terra. Segundo Leal (1875),
"As sesmarias não eram simples doações, mas encargos: o sesmeiro era obrigado a cultivar a terra, sob pena de perdê-la. A improdutividade era não apenas um crime econômico, mas também moral, pois era ofensa à lei de Deus, que manda ao homem trabalhar para tirar da terra o seu sustento." (LEAL, 1875, p. 54).
Assim, a terra ociosa era teologicamente entendida como uma violação da ordem natural, que exigia trabalho, frutificação e comunhão com a criação.
3.3. Implantação de missões religiosas
A missão evangelizadora não era acessória, mas central. Padre Antônio Vieira, em seu famoso Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, assevera:
"O primeiro dever dos reis cristãos não é conquistar terras, mas ganhar almas para Deus. Que vale alargar os reinos na terra, se não se alargam os reinos do céu?" (VIEIRA, 1679, p. 24).
As missões garantiam que a ordem econômica e social não degenerasse em mero utilitarismo materialista. Sem elas, toda empresa colonial seria um fracasso aos olhos de Deus e da Coroa.
4. A liberdade como forma de governo cristão
A concepção de liberdade na época da monarquia portuguesa não é a liberdade negativa do liberalismo moderno — ausência de coerção —, mas a liberdade positiva cristã, que consiste na capacidade de viver segundo a ordem estabelecida por Deus.
Em termos teológicos e jurídicos, isto se expressa na doutrina de São Tomás de Aquino:
"É livre aquele que age segundo a reta razão; logo, quem vive segundo a lei de Deus é o verdadeiro livre." (AQUINO, 1265, I-II, q. 17, a. 1).
Assim, aprimorar a liberdade de muitos significa fornecer-lhes os meios — materiais, sociais e espirituais — para que possam viver segundo essa ordem. Isso é, de fato, uma forma de governo: governar significa ordenar a sociedade para que cada homem cumpra seu fim último, que é Deus.
5. Conclusão
Colonizar, no imaginário dessa época, era um ato de profunda responsabilidade espiritual e social. Não se tratava de mero domínio territorial ou de exploração econômica, mas de um compromisso com a ordem do mundo criada por Deus. Fundar povoações, cultivar a terra e estabelecer missões religiosas eram expressões concretas desse compromisso.
Portanto, aprimorar a liberdade dos povos — entendida como a capacidade de viver segundo a lei divina — era, na prática, uma forma de governo espiritual e temporal, onde o serviço a Cristo, o bem comum e o desenvolvimento econômico se integravam numa mesma empresa civilizatória.
Referências bibliográficas
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ANCHIETA, José de. Cartas: informação das coisas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001. Parte I-IIae, questão 17, artigo 1.
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BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino: Com os nomes das principais coisas não só de Portugal, mas também das mais partes do mundo. Tomo II. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
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LEAL, Augusto Tavares de. As sesmarias no Brasil: estudo histórico e jurídico. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875.
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VIEIRA, Antônio. Sermões. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1959. Vol. III.
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