Introdução
O fenômeno Jair Bolsonaro, que culminou na sua eleição à presidência da República em 2018, não pode ser compreendido apenas pelos parâmetros tradicionais da ciência política brasileira. Ele representa, na verdade, um ponto de inflexão histórica no sistema político nacional, onde, pela primeira vez, um candidato chega ao poder sem o endosso direto das elites tradicionais — políticas, econômicas, midiáticas e culturais.
Esse processo não é um fenômeno isolado do Brasil, mas está inserido em uma dinâmica global mais ampla, onde a transformação tecnológica, especialmente a ascensão das redes sociais, rompeu os monopólios tradicionais da comunicação e da formação da opinião pública. Tal fenômeno dá origem ao que podemos chamar de eletrização da política, isto é, uma forma de mobilização popular que contorna os canais institucionais convencionais, operando de maneira direta, emocional e viral.
Para compreender adequadamente esse processo, é necessário recorrer à teoria das elites, desenvolvida por pensadores como Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca, James Burnham e José Ortega y Gasset, além dos diagnósticos mais recentes oferecidos por Olavo de Carvalho, cuja atuação foi central para a articulação do campo cultural conservador no Brasil.
As redes sociais e a ruptura com a elite
A ascensão de Bolsonaro não teria sido possível sem a mediação das redes sociais. Esses novos instrumentos tecnológicos funcionaram como dispositivos de desintermediação, permitindo que o candidato falasse diretamente ao povo, sem precisar submeter-se aos filtros tradicionais da grande imprensa, dos partidos, das universidades ou de outras instituições da elite.
Conforme diagnosticou Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas, quando as massas passam a ter acesso irrestrito aos meios de expressão e influência, elas desafiam a autoridade das minorias qualificadas que tradicionalmente conduziam os destinos das sociedades. O problema, segundo Ortega, é que a massa, quando se insurge sem disciplina formativa, tende a se comportar de maneira anárquica e destrutiva.
No entanto, o caso de Bolsonaro não é meramente uma rebelião das massas, mas a manifestação de um vácuo de representação, como já haviam descrito Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto. Para Mosca, toda sociedade é, na prática, governada por uma minoria organizada — a elite. Quando essa elite se torna disfuncional, desconectada dos valores, interesses e necessidades da maioria, abre-se espaço para a emergência de lideranças alternativas.
Pareto, por sua vez, descreveu esse fenômeno como a circulação das elites: quando uma elite dominante perde suas virtudes, sua capacidade de coerção ou de consenso, ela é, inevitavelmente, substituída por uma nova elite. Esse processo, muitas vezes, se dá de forma tumultuada, e não necessariamente garante uma elite superior à anterior, mas simplesmente uma mudança nos ocupantes do poder.
No Brasil, as redes sociais operaram como catalisadoras desse processo. Elas revelaram uma fraqueza estrutural na elite política, cultural e econômica, que, profundamente desacreditada, não conseguiu barrar a ascensão de um candidato oriundo de fora dos seus quadros tradicionais. Como bem observa James Burnham em A Revolução dos Gerentes, as elites modernas costumam ser compostas por tecnocratas, burocratas e especialistas. No entanto, quando esses grupos se tornam excessivamente fechados e autoreferenciais, desconectando-se da realidade popular, surge o risco de serem derrubados por movimentos de contestação radical.
A improvisação partidária e o voto popular direto
O sistema partidário brasileiro rejeitou Bolsonaro de forma quase unânime. Nenhum dos grandes partidos tradicionais quis endossar sua candidatura. Isso obrigou a criação, às pressas, de uma estrutura partidária mínima, suficiente apenas para formalizar sua inscrição nas eleições. Esse fato é, em si mesmo, revelador: o poder institucionalizado, na forma dos partidos, perdeu a capacidade de controlar o acesso ao governo.
Bolsonaro, portanto, foi um candidato eleito diretamente pelo povo, contornando os vetores clássicos da intermediação política. Isso não significa que sua eleição tenha ocorrido fora da lógica das elites, mas sim que representou a emergência de uma nova elite, cuja formação se deu fora dos círculos tradicionais — uma elite midiatizada, digital, composta por influenciadores, operadores culturais independentes, microempreendedores de conteúdo e movimentos organizados nas plataformas online.
Essa configuração confirma a tese de Pareto sobre a inevitabilidade da circulação das elites, bem como valida a crítica de Burnham à burocracia moderna, que, quando perde seu dinamismo, é fatalmente atropelada por formas alternativas de mobilização.
O Papel de Olavo de Carvalho
Dentro desse contexto, é impossível não mencionar o papel desempenhado por Olavo de Carvalho, que, durante décadas, atuou como formador de uma nova camada cultural conservadora no Brasil. Seus escritos, aulas e intervenções públicas contribuíram decisivamente para a formação intelectual de muitos dos atores que viriam a compor a base de apoio cultural, político e até técnico do governo Bolsonaro.
Olavo compreendia profundamente a dinâmica da guerra cultural e a necessidade de atacar os pilares intelectuais da elite hegemônica, especialmente aqueles fincados no marxismo cultural, na mídia corporativa e nas universidades públicas. Seu trabalho é, sob esse aspecto, um dos mais notáveis exemplos contemporâneos da formação de uma elite alternativa, como exigem os processos de circulação descritos por Pareto e Mosca.
Conclusão
A eleição de Jair Bolsonaro representou um fenômeno inédito na história política brasileira: a emergência de uma liderança presidencial sem o apoio prévio das elites tradicionais. Esse evento foi catalisado pela transformação tecnológica das redes sociais, que permitiu uma forma direta de comunicação e mobilização popular.
Contudo, à luz da teoria das elites, fica claro que esse fenômeno não aboliu o governo das elites, apenas promoveu sua substituição. A velha elite, desconectada e decadente, foi desafiada por uma nova elite, formada a partir da interseção entre movimentos culturais, operadores digitais e lideranças populares emergentes.
Trata-se de um fenômeno que revela tanto as potencialidades quanto os riscos das democracias eletrificadas: ao mesmo tempo em que corrige desvios das oligarquias estabelecidas, também abre caminho para formas de personalismo, instabilidade e conflito cultural intenso.
Bibliografia
-
BURNHAM, James. A Revolução dos Gerentes. Lisboa: Antígona, 1941.
-
MOSCA, Gaetano. A Classe Política: Um Estudo da Sociologia dos Governos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
-
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
-
PARETO, Vilfredo. Ascesa e Declínio das Elites. Lisboa: Presença, 1991.
-
CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. Rio de Janeiro: Record, 1996.
-
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.
-
CARVALHO, Olavo de. A Nova Era e a Revolução Cultural. Campinas: Vide Editorial, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário