Em muitos debates sobre direito comparado, surge a curiosidade em torno do chamado grande júri (grand jury) do sistema jurídico norte-americano. Sua existência, por vezes mitificada, desperta o interesse de estudiosos do processo penal, especialmente quando comparada à atuação do juiz de pronúncia no sistema brasileiro, no âmbito do Tribunal do Júri.
Embora sejam instituições distintas, pertencentes a tradições jurídicas diferentes (common law e civil law, respectivamente), ambas desempenham um papel funcionalmente semelhante: o de filtrar os casos que efetivamente merecem ser levados a julgamento popular.
📌 O Grande Júri: Origem, Composição e Finalidade
O grande júri é uma instituição típica do direito penal norte-americano, prevista na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Trata-se de um colegiado de cidadãos leigos, geralmente composto por 16 a 23 pessoas, convocado para deliberar, em segredo, se existem provas suficientes para acusar formalmente alguém de um crime, isto é, para emitir um "indictment".
A atuação do grande júri ocorre antes do julgamento propriamente dito. O réu não participa dos trabalhos, nem seu advogado; quem conduz a apresentação dos fatos é o promotor público, que exibe documentos, escuta testemunhas e solicita o indiciamento. Se pelo menos doze jurados concordarem que há causa provável (probable cause), o acusado é formalmente denunciado e segue-se o processo judicial.
Portanto, o grande júri não julga a culpa, mas funciona como uma instância pré-processual voltada à formação da acusação, com o objetivo de proteger o cidadão de acusações arbitrárias por parte do Estado.
📌 O Juiz de Pronúncia no Brasil: Rito do Júri e Garantia Processual
No Brasil, o equivalente funcional ao grande júri é encontrado na figura do juiz de pronúncia, que atua no rito especial do Tribunal do Júri (arts. 406 a 497 do Código de Processo Penal).
Após a fase de instrução preliminar, o juiz analisa se existem indícios suficientes de autoria e prova da materialidade de um crime doloso contra a vida (como homicídio, infanticídio, induzimento ao suicídio, entre outros). Caso existam, ele pronuncia o réu, ou seja, decide que ele deve ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, composto por sete jurados leigos.
É importante destacar que o juiz de pronúncia não julga o mérito da causa. Ele apenas verifica a presença de elementos mínimos que justificam o envio do caso à apreciação do povo, conforme o art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição Federal, que assegura a soberania dos veredictos do júri.
A decisão de pronúncia pode ser:
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Pronúncia: o réu será julgado pelo júri;
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Impronúncia: ausência de indícios suficientes;
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Absolvição sumária: se houver prova cabal de exclusão do crime ou da ilicitude;
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Desclassificação: se o crime não for doloso contra a vida, cabendo à justiça comum o julgamento.
🧭 Comparando as Funções
Apesar de se situarem em momentos distintos dos respectivos processos penais, o grande júri americano e o juiz de pronúncia brasileiro compartilham a missão de evitar que o réu seja submetido a julgamento popular sem justa causa. Ambos operam como instâncias de controle prévio da acusação.
| Critério | Grande Júri (EUA) | Juiz de Pronúncia (Brasil) |
|---|---|---|
| Natureza | Coletiva (leigos) | Singular (juiz togado) |
| Composição | 16 a 23 cidadãos | 1 juiz de direito |
| Participação da defesa | Não participa | Participa plenamente |
| Publicidade | Segredo | Publicidade relativa (salvo exceções) |
| Resultado | Indictment (acusação formal) | Pronúncia (envio ao júri popular) |
| Julga a culpa? | Não | Não |
⚖️ Diferenças Sistêmicas e o Princípio Acusatório
A presença do grande júri no direito americano decorre de uma tradição constitucional que valoriza a participação cidadã mesmo nas etapas iniciais do processo penal. Já no Brasil, inserido em um sistema acusatório de matriz romano-germânica, o controle da acusação é atribuído a um juiz técnico, em respeito aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Enquanto o grande júri busca ser um freio comunitário ao poder do Estado, o juiz de pronúncia cumpre uma função de garantia jurisdicional, sendo imparcial e fundamentando sua decisão com base no conjunto probatório colhido na fase instrutória.
📚 Conclusão
A comparação entre o grande júri norte-americano e o juiz de pronúncia brasileiro revela como diferentes sistemas jurídicos resolveram o mesmo problema: como garantir que ninguém seja julgado sem justa causa.
Embora os meios adotados variem – um pelo veredito prévio de um grupo de cidadãos, outro por uma decisão judicial técnica –, o fim é o mesmo: assegurar a justiça do processo e a dignidade da pessoa humana, evitando perseguições arbitrárias e preservando o equilíbrio entre a autoridade estatal e os direitos do acusado.
📖 Bibliografia
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