“Fazei isto em memória de mim.” (Lc 22,19)
No tempo presente, em que a palavra “conservadorismo” circula com uma mistura de respeito e escárnio, torna-se necessário esclarecer o que, de fato, merece ser conservado — e, sobretudo, em que espírito essa conservação deve ocorrer. A maior parte das correntes autodenominadas conservadoras não passa de conservantismo: um esforço estéril de manter estruturas de conveniência, identidade cultural ou estabilidade social, ainda que todas elas estejam dissociadas da verdade. Como advertia Olavo de Carvalho, trata-se de um conservadorismo de “condomínio”: uma adesão social e estética, não moral nem espiritual¹.
Mas há um conservadorismo verdadeiro, nascido não da conveniência, mas da dor de Cristo. E, por isso mesmo, ele só é possível a partir da Eucaristia, onde essa dor é conservada de modo real, sacramental e operante. A Eucaristia é definida pelo Concílio Vaticano II como “fonte e ápice da vida crist㔲. Aqui está o coração da questão: o autêntico conservadorismo é eucarístico.
🌾 A Eucaristia: Conservação viva da Verdade que sangra
Quando Cristo nos ordena “fazei isto em memória de mim”, Ele institui o memorial de Sua Paixão não como uma lembrança passiva, mas como uma atualização sacramental do seu sacrifício eterno. No sentido hebraico, essa “memória” (zikkaron) é uma atualização operante dos eventos salvíficos³.
A Missa não é uma lembrança do passado, mas a presença real da oblação eterna do Cordeiro de Deus. Bento XVI sintetizou isso ao dizer: *“A Eucaristia arrasta a história para o interior da oblação de Cristo”⁴. Conservar a dor de Cristo, portanto, é tornar-se parte viva desse sacrifício que santifica o tempo.
⚔️ O falso conservantismo: culto da conveniência sem cruz
Em contraste, o conservantismo é a conservação do que é útil, tradicional ou familiar, mesmo quando isso já se desvinculou da verdade. É o conservadorismo dos fariseus, denunciado por Jesus: “Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim” (Mt 15,8). Os fariseus conservavam a Lei, mas sem obedecer ao Verbo.
O conservantismo é a idolatria da ordem aparente, o apego ao costume pelo costume, a rigidez como máscara da infidelidade. Trata-se de uma tradição morta, que não passa pela cruz e não se submete à Eucaristia.
🕊️ Conservar é adorar
O verdadeiro conservador é, por sua vez, um adorador eucarístico. O Catecismo da Igreja Católica ensina que a Eucaristia “torna presente o sacrifício da cruz”⁵. Conservar a dor de Cristo é tornar-se sacerdote da própria vida, oferecendo-se em sacrifício espiritual, em união com o Cordeiro.
Conservar, nesse sentido, é:
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Guardar a presença de Cristo com temor e tremor;
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Viver em estado de oblação contínua;
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Submeter todos os critérios morais e sociais à Cruz;
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Recusar qualquer tradição que não passe pelo crivo do Evangelho.
A Tradição viva da Igreja exige um conservador que não seja um “curador de museu”, mas um “portador da luz”, disposto a sofrer com Cristo para que a verdade permaneça.
🧭 A história como lugar da memória redentora
Antes da vinda de Cristo, tudo o que se conservava — ainda que sensato — permanecia sem redenção. A filosofia grega, por exemplo, intuía que “a verdade conhecida é verdade obedecida” (como ensinava Platão), mas não possuía os meios sobrenaturais para obedecer plenamente.
Somente em Cristo a verdade se torna carne, e com ela vem a graça para obedecer. Blaise Pascal compreendeu isso ao escrever: *“Não conhecemos Deus senão por Jesus Cristo”⁶. A Eucaristia, nesse sentido, introduz a eternidade no tempo, e faz da história o lugar onde a dor redentora é conservada.
🛡️ Conclusão: traduzir a tradição em sacrifício pessoal
Não basta conservar ideias, símbolos ou instituições. É necessário conservar a ferida aberta do lado de Cristo, pela qual jorra a salvação. Isso exige sofrimento, vigilância e uma adesão amorosa ao mistério da Cruz. Como ensinava São Tomás, a verdade é “a adequação da mente à realidade”⁷ — e a realidade redentora de Cristo nos obriga ao sacrifício.
Portanto, conservadorismo é vocação eucarística. É fidelidade ao sacrifício de Cristo, renovada em cada Missa e vivida na carne de cada fiel. Quem não compreende isso não passa de guardião do túmulo vazio. Mas quem conserva a dor de Cristo, esse conserva a eternidade no tempo — e transforma o mundo à imagem do Crucificado.
📚 Referências
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CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013.
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CONCÍLIO VATICANO II. Lumen Gentium. In: Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1999.
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RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Introdução ao espírito da liturgia. São Paulo: Loyola, 2001.
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Idem, ibidem.
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IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.
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PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
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SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Veritate. Tradução parcial disponível em: https://www.documentacatholicaomnia.eu.
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BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições CNBB, 2008.
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