Introdução
O debate sobre a regulação das redes sociais no Brasil emerge como uma das pautas mais sensíveis da contemporaneidade, especialmente em uma era marcada por tensões entre liberdade e controle. A recente manifestação do ex-presidente Jair Bolsonaro, crítica ao projeto de lei conhecido como PL das Fake News (PL 2630) e às decisões judiciais que visam regular conteúdos nas plataformas digitais, reacende uma discussão de ordem filosófica, jurídica e civilizacional: é possível preservar a democracia restringindo a liberdade de expressão?
1. A Centralidade da Liberdade de Expressão
A liberdade de expressão não é apenas um direito individual, mas um pilar fundamental de qualquer regime democrático. John Stuart Mill, no clássico “On Liberty” (1859), afirma:
"Se toda a humanidade menos uma pessoa fosse da mesma opinião, e apenas uma pessoa discordasse, a humanidade não teria mais direito de silenciar essa pessoa do que ela teria, se tivesse o poder, de silenciar a humanidade." (MILL, 2008, p. 33).
Mill defende que a verdade só pode emergir do livre confronto de ideias e que qualquer tentativa de controle do discurso é, além de moralmente condenável, epistemicamente desastrosa para o desenvolvimento da sociedade.
O constitucionalista norte-americano Alexander Meiklejohn também sintetiza a ideia da liberdade de expressão como condição da soberania popular:
“O que é essencial não é que cada indivíduo fale, mas que a soberania popular permaneça informada.” (MEIKLEJOHN, 1948, p. 26, tradução nossa).
Portanto, qualquer regulação que vise definir unilateralmente o que é verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, não apenas fere direitos individuais, mas mina o próprio fundamento do regime democrático.
2. O Estado como monopólio da verdade
A crítica de Jair Bolsonaro se alinha a uma preocupação clássica que Friedrich Hayek já denunciava em “O Caminho da Servidão”:
“Se a liberdade de expressão e pensamento é extinta, então não restará qualquer barreira contra a tirania.” (HAYEK, 2010, p. 163, tradução nossa).
Permitir que o Estado determine os contornos do discurso aceitável significa deslocar a sociedade do campo da verdade objetiva — fruto do livre debate — para o campo da verdade oficial, definida pelos interesses circunstanciais de quem ocupa o poder.
Além disso, a filósofa Hannah Arendt, em “Origens do Totalitarismo”, observa que:
“A mentira política se torna mais eficaz não quando esconde a verdade, mas quando destrói a própria noção de verdade objetiva.” (ARENDT, 2012, p. 388).
Este é o risco intrínseco ao controle estatal da informação: substituir a pluralidade do debate pela imposição de uma versão única da realidade.
3. A Suficiência do Ordenamento Jurídico Brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro já oferece os instrumentos necessários para lidar com abusos no ambiente digital. O Código Penal tipifica os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) nos artigos 138 a 145, além de prever reparações civis no Código Civil.
O jurista brasileiro Luiz Guilherme Marinoni observa:
“A existência de tutela jurisdicional para reparação de danos e para a cessação de atos ilícitos no âmbito civil e penal torna dispensável a criação de modelos de censura prévia.” (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 78).
Portanto, a narrativa de que é necessário criar novos mecanismos para “proteger” a sociedade de fake news não se sustenta do ponto de vista jurídico. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de criar estruturas de controle social e político sob pretextos moralizantes.
4. Liberdade e Controle: um dilema civilizacional
A história mostra que a erosão das liberdades nunca começa de forma abrupta, mas quase sempre sob justificativas que soam razoáveis: segurança, ordem, bem-estar público. A filósofa Ayn Rand alerta:
“O menor comprometimento com o princípio dos direitos individuais leva, inevitavelmente, à destruição desses direitos.” (RAND, 1967, p. 135, tradução nossa).
Se o Estado tem o poder de definir quais discursos são aceitáveis, então o direito à livre expressão deixa de ser um direito e passa a ser uma concessão — revogável, circunstancial e dependente do humor dos governantes.
5. Considerações Finais
A fala de Jair Bolsonaro reflete uma crítica não apenas política, mas civilizacional: a tentativa de regular as redes sociais não se limita ao combate a fake news, mas representa uma transformação profunda na relação entre o cidadão e o Estado.
A liberdade de expressão não é um risco para a democracia; é sua própria essência. O risco reside exatamente em tentar protegê-la suprimindo-a. A história ensina que todo regime que começa a decidir quem pode falar e o que pode ser dito invariavelmente degenera em tirania.
Referências (ABNT)
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
HAYEK, Friedrich A. O Caminho da Servidão. Tradução: Pedro Elian. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Tutela dos Direitos Mediante Procedimento Comum. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
MEIKLEJOHN, Alexander. Free Speech and Its Relation to Self-Government. New York: Harper & Brothers, 1948.
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Tradução: Pedro Madeira. São Paulo: Martin Claret, 2008.
RAND, Ayn. Capitalism: The Unknown Ideal. New York: Signet, 1967.
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