Ao se analisar a história da imigração italiana para o Brasil e para os Estados Unidos, torna-se evidente que a diferença na origem regional desses imigrantes teve um impacto significativo na forma como cada país lidou com a influência do crime organizado. Enquanto os Estados Unidos viram nascer e se consolidar estruturas mafiosas poderosas, como a famosa Cosa Nostra, o Brasil, apesar de seus próprios desafios com o crime, não desenvolveu redes mafiosas nos moldes italianos. A explicação para isso está enraizada na geografia da imigração: o norte da Itália foi a principal região de origem dos imigrantes que vieram ao Brasil, ao passo que o sul da Itália foi a principal fonte dos que foram para os Estados Unidos.
A imigração italiana: contextos distintos
A imigração italiana para o Brasil ganhou força a partir da década de 1870, sobretudo após a abolição do tráfico transatlântico de escravos. O país precisava substituir a mão de obra escrava, especialmente nas lavouras de café do Sudeste, e passou a incentivar a vinda de europeus. Assim, entre 1876 e 1920, cerca de 1,6 milhão de italianos desembarcaram em portos brasileiros. A esmagadora maioria deles veio do norte da Itália — especialmente das regiões do Vêneto, Lombardia, Trentino-Alto Ádige e Emília-Romanha. Esses imigrantes, em geral, tinham origem camponesa e foram direcionados a áreas rurais, sendo integrados em colônias agrícolas ou contratados como trabalhadores assalariados nas fazendas de café.
Nos Estados Unidos, o fenômeno da imigração italiana se deu de forma distinta. Entre 1880 e 1914, mais de 4 milhões de italianos migraram para o país. Diferentemente do Brasil, cerca de 80% desses imigrantes eram provenientes do sul da Itália — regiões como Sicília, Nápoles, Calábria e Apúlia. Muitos deles se estabeleceram em centros urbanos densamente povoados, como Nova York, Boston, Filadélfia e Chicago, formando bairros étnicos como o famoso Little Italy.
As raízes da máfia e sua exportação para os EUA
O sul da Itália, especialmente a Sicília, é o berço da máfia moderna. A Cosa Nostra, uma organização mafiosa que se fortaleceu no século XIX, consolidou-se como uma entidade paralela ao Estado, oferecendo "proteção", promovendo extorsão, tráfico e assassinatos. Em muitas comunidades do sul italiano, a ausência do poder público e a tradição clientelista criaram o ambiente ideal para que a máfia florescesse e se tornasse parte da estrutura social.
Quando os imigrantes do sul italiano chegaram aos Estados Unidos, levaram consigo não apenas seus costumes e dialetos, mas também, em alguns casos, os códigos de silêncio (omertà) e as estruturas informais de poder típicas de suas regiões de origem. Em meio à pobreza e ao preconceito que enfrentaram nas grandes cidades americanas, alguns desses imigrantes recorreram à organização mafiosa como uma forma de ascensão econômica e de proteção contra a hostilidade do novo ambiente. Assim, nas primeiras décadas do século XX, a máfia siciliana estabeleceu suas bases em solo americano, ramificando-se por diversas cidades e adquirindo grande poder, especialmente durante a era da Lei Seca (1920–1933).
Por que isso não ocorreu no Brasil
No Brasil, o cenário foi bem diferente. Primeiro, como já dito, os italianos que vieram ao país eram majoritariamente do norte, onde a máfia não era um fenômeno cultural significativo. Segundo, esses imigrantes foram encaminhados a áreas rurais, o que dificultava a formação de redes criminosas organizadas em moldes urbanos. Além disso, o próprio tipo de inserção social e econômica no Brasil — voltada ao trabalho agrícola e, posteriormente, ao comércio e à indústria em cidades como São Paulo — foi menos propício à formação de estruturas paralelas de poder.
Por fim, deve-se destacar que, embora o Brasil tenha enfrentado e ainda enfrente graves problemas com o crime organizado, as raízes e os modelos dessas organizações criminosas são diferentes. O tráfico de drogas, por exemplo, deu origem a facções como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, mas essas organizações surgiram de dentro do sistema prisional e em contextos socioeconômicos locais, sem relação direta com a cultura mafiosa italiana.
Conclusão
A presença ou ausência da máfia nos países que receberam imigrantes italianos não dependeu apenas do número de imigrantes, mas principalmente de sua origem regional, do contexto de inserção e das condições sociais locais. A predominância de imigrantes do norte da Itália no Brasil e a estrutura agrária de sua inserção social explicam por que o país não foi palco de redes mafiosas como as que floresceram nos Estados Unidos, onde a imigração do sul italiano teve um papel decisivo. Essa diferença, embora pouco comentada, é um exemplo claro de como a história das migrações molda o tecido social e político das nações de forma profunda e duradoura.
Bibliografia
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→ http://www.an.gov.br
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