Por muito tempo, ouvi da minha mãe uma frase que, à primeira vista, parecia simples, quase um conselho cotidiano:
“Carro tem que ser da pessoa.”
Na época, eu estava na universidade. Meus colegas, como é natural na juventude, sonhavam em ter um carro — para sair, para se divertir, para impressionar alguém, quem sabe até “pegar mulher”, como diziam sem qualquer pudor. Era o discurso comum de uma geração que via no automóvel um símbolo de status, liberdade ou ostentação.
Mas, no meu caso, o desejo de aprender a dirigir, de ter um carro, carregava outro peso, outro significado. Não era sobre vaidade, nem sobre aventuras superficiais. Era sobre cuidar, sobre estar disponível, sobre servir.
Entre os anos de 2000 e 2025, meu pai viveu um ciclo exaustivo de internações, tratamentos, fragilidades e limitações impostas pela saúde. E, nesse cenário, o que poderia ser apenas uma facilidade — dirigir — se tornava uma necessidade urgente. Várias vezes ficamos sem o nosso condutor principal. Várias vezes dependemos da boa vontade dos outros, da espera, dos favores, dos improvisos.
Eu percebia com uma clareza que talvez fosse dura demais para a minha idade que o carro, naquele contexto, não era um luxo, mas uma extensão da nossa autonomia como família. Era a possibilidade de levar meu pai ao hospital a qualquer hora, buscar exames, resolver pendências, garantir que a roda da vida seguisse girando mesmo quando tudo parecia conspirar para que ela parasse.
Minha mãe, contudo, não enxergava assim. Ela, que tanto repetia aquela frase — “Carro tem que ser da pessoa” —, não conseguia traduzir esse princípio em ação, em investimento, em planejamento. Talvez tenha sido o medo, talvez a cultura de que determinadas coisas “não eram para a gente”, ou talvez a visão limitada de quem foi educada num tempo em que as mulheres, e as famílias em geral, tinham menos acesso à ideia de autonomia financeira, patrimonial e logística.
O fato é que a visão que eu tinha — e que tentei partilhar — não encontrou eco. E o tempo, sempre implacável e revelador, cumpriu sua missão: hoje, não temos mais meu pai. E com sua partida, fica uma lição gravada em mim, tão profunda quanto silenciosa: quando falta visão no tempo certo, sobra peso no tempo errado.
Essa memória não me traz rancor. Ela me traz lucidez. Mostra-me, com ainda mais força, que há responsabilidades que não podem ser adiadas. Que certos investimentos — materiais, sim, mas sobretudo morais — não são vaidade, mas caridade. Que enxergar as necessidades futuras e agir no presente não é capricho, é amor prático.
Hoje compreendo, mais do que nunca, que desejar um carro, no meu caso, não foi desejar um bem. Foi desejar o bem.
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