Em uma de suas tantas intervenções memoráveis, o professor Olavo de Carvalho afirmou que a capacidade de descrever as coisas tal como elas são é, na verdade, Deus falando. Essa declaração, tão simples quanto profunda, traz à tona um aspecto essencial da vida espiritual, filosófica e intelectual: a submissão à verdade, que é, ao mesmo tempo, um exercício de amor, de humildade e de santificação.
O ato de descrever: um exercício de fidelidade ao ser
Vivemos em um tempo em que as palavras perderam muito de seu peso ontológico. Em vez de apontarem para o ser das coisas, tornaram-se, muitas vezes, instrumentos de manipulação, de controle, de encobrimento da realidade. A cultura contemporânea, marcada pelo nominalismo, pela retórica vazia e pelo relativismo, não ensina mais os homens a nomear as coisas corretamente, muito menos a descrevê-las.
Descrever é, antes de tudo, ver. Ver com os olhos da inteligência, ver com a limpidez da consciência, ver com a disposição humilde de não projetar sobre a realidade os próprios desejos, as próprias fantasias ou ideologias. Quem descreve corretamente não cria, não imagina, não fantasia — reconhece. E reconhecer é um ato de submissão à ordem que Deus imprimiu no ser das coisas.
Quando alguém diz: “Isto é assim”, está, de certo modo, ecoando o próprio Nome de Deus, Aquele que Se revelou a Moisés como “Eu Sou Aquele que Sou”. Toda vez que apontamos para o ser das coisas, damos testemunho, ainda que de modo imperfeito e finito, da fonte do ser — Deus.
O descrever como oração e combate
Se a mentira é, segundo o Evangelho, a linguagem do diabo — “ele é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44) —, então descrever fielmente é um ato de resistência espiritual, um exorcismo silencioso, uma forma de combate.
Por isso, não é exagero dizer que descrever é uma forma de oração. Não se trata apenas de um procedimento técnico, mas de uma postura de reverência diante do real. O mundo foi criado por Deus, e nele cada ser carrega uma centelha da verdade eterna. Quando tomamos consciência disso, o simples ato de dizer “Isto é...” se converte em louvor.
A crise dos diálogos e o retorno à descrição
Nas eras de decadência cultural, o diálogo verdadeiro se torna raro. As pessoas já não buscam a verdade, mas a confirmação de seus próprios vícios, paixões ou delírios. É natural, então, que aqueles que ainda amam a verdade se recolham a uma postura contemplativa e descritiva. Quando o diálogo se corrompe, resta o testemunho.
Quem descreve salva, ainda que parcialmente, a possibilidade da comunicação autêntica. O mundo pode estar tomado pela confusão, mas aquele que descreve mantém acesa uma chama de lucidez. E, com isso, prepara o terreno para que, no tempo oportuno, o diálogo verdadeiro — aquele que se funda na busca comum da verdade — possa renascer.
Descrever como método de santificação
Diante disso, torna-se claro que descrever não é uma habilidade menor, nem uma limitação. Ao contrário, é um método de santificação. É o caminho dos simples, dos sábios, dos santos. É o caminho daqueles que sabem que, antes de falar, é preciso ouvir; e que, antes de dialogar, é preciso contemplar.
Na prática, isso significa cultivar a atenção, o silêncio interior, a reverência diante do ser. Significa suspender o juízo apressado, abandonar as etiquetas fáceis, e dedicar-se, com amor e paciência, a ver as coisas como elas realmente são — e, então, nomeá-las.
Conclusão: a voz de Deus na voz da realidade
Sim, descrever é ouvir Deus. A voz do Criador ressoa silenciosamente na ordem do mundo, no ser das coisas, na harmonia da criação. Aquele que aprende a escutar essa voz, e que se dispõe a traduzi-la em palavras fiéis, torna-se, ele mesmo, um instrumento dessa verdade que liberta.
Num mundo dominado pela mentira, pela confusão e pelo simulacro, o simples gesto de dizer: “Isto é...”, com verdade, com amor e com precisão, é um dos maiores atos de resistência, de liberdade e de adoração que um ser humano pode realizar.
Bibliografia
📖 Sagradas Escrituras
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Bíblia Sagrada. Êxodo 3,14 — “Eu Sou Aquele que Sou”.
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João 8,44 — “Ele é mentiroso e pai da mentira”.
📜 Filosofia Clássica e Metafísica
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ARISTÓTELES. Metafísica. Livro Gama, especialmente os capítulos sobre o ser enquanto ser.
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SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Questões sobre a verdade, sobre Deus como Ser Subsistente (I, q. 3, a.4; I, q. 13, a.11).
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SANTO TOMÁS DE AQUINO. De Veritate. Especialmente a questio 1 sobre a verdade como adaequatio intellectus et rei (adequação entre o intelecto e a realidade).
📚 Filosofia Moderna e Contemporânea
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ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. Reflexões sobre a fidelidade à verdade e à realidade.
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GUÉNON, René. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos. Uma crítica profunda à degeneração do simbolismo e da inteligência moderna.
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MARCEL, Gabriel. Ser e Ter. Reflexões existenciais sobre a presença, o ser e a objetividade do real.
🏛️ Olavo de Carvalho e Filosofia da Consciência
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CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Especialmente os capítulos sobre a estrutura da realidade e o ser enquanto ser.
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CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. Sobre a retomada da lógica aristotélica e a necessidade da descrição correta da realidade.
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CARVALHO, Olavo de. A Filosofia e seu Inverso. Sobre a relação entre o amor à verdade, o ato de conhecer e a deformação moderna do pensamento.
🔍 Outras Referências de Apoio
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PIEPER, Josef. Só Quem Sabe é Livre. Reflexões sobre o papel da contemplação e da verdade na vida intelectual e espiritual.
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ROUWET, Dom Jean-Baptiste. A Ordem do Ser: Estudos de Ontologia Tomista. Uma síntese clara da metafísica clássica aplicada à vida contemporânea.
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