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terça-feira, 27 de maio de 2025

O direito à propriedade dos meus dispositivos digitais: uma questão de liberdade, intimidade e ordem na vida social

Aprendi com minha mãe uma lição simples, mas definitiva: “Carro tem que ser da pessoa.” O sentido era claro — aquilo que representa sua liberdade, sua autonomia, sua mobilidade e sua responsabilidade precisa estar sob seu comando, sob sua guarda e sob sua propriedade.

No mundo atual, essa lição se amplia de forma quase natural: celular, computador e tablet — tudo isso tem que ser da pessoa. Esses dispositivos não são apenas ferramentas. São extensões da nossa memória, da nossa história, da nossa consciência prática, dos nossos afetos e da nossa vida inteira.

Quando o compartilhamento se torna um risco

Pense numa situação muito comum nos tempos atuais. Você partilha um computador com seu namorado, namorada, esposo ou esposa. Por um descuido, essa pessoa acessa seu Facebook, seu WhatsApp, seu e-mail — e, se for insegura, ciumenta ou movida por fantasmas internos, pode transformar um comentário antigo, uma lembrança, uma conversa despretensiosa ou até um simples like em uma crise desnecessária. Um problema que não tem nenhuma relação com a realidade objetiva, mas nasce exclusivamente da violação de um limite que não deveria ter sido ultrapassado.

Esse é o retrato de um mal que se alastra nas relações contemporâneas: a confusão entre amor e posse, entre cuidado e controle, entre confiança e vigilância.

A tecnologia amplifica o que já está no espírito

Se no passado a violação da intimidade se dava pela abertura de uma carta, pela invasão de uma gaveta ou pela bisbilhotagem no porta-luvas do carro, hoje essa mesma atitude toma uma proporção exponencial no mundo digital. Afinal, no celular, no tablet e no computador, estão concentradas:

  • Memórias afetivas;

  • Dados financeiros;

  • Históricos de conversas;

  • Registros da vida profissional;

  • Provas da própria identidade (senhas, contratos, documentos);

  • E, sobretudo, a narrativa invisível da vida privada.

O princípio da propriedade pessoal digital

Assim como ninguém tem o direito de dirigir seu carro sem sua permissão, acessar sua conta bancária sem sua autorização ou abrir sua correspondência, ninguém deveria acessar seus dispositivos digitais sem um consentimento claro e livre.

Esse não é um capricho. É uma exigência de ordem, de justiça e de sanidade. É a defesa do espaço vital que cada pessoa precisa preservar para viver bem, amar bem e se relacionar com liberdade e dignidade.

O amor verdadeiro muda tudo

Contudo, quem observa a vida com profundidade sabe que há uma exceção honrosa, elevada e bela a essa regra: quando o amor amadurece e se converte em verdadeira amizade.

Na minha família, não havia espaço para ciúmes doentios, nem para controle possessivo. Meus pais não eram pessoas inseguras. Eles viviam um casamento que, com o passar dos anos, se transformou numa amizade profunda. E é nesse ambiente de amizade — onde reina a confiança, a lealdade e a paz — que o compartilhamento de senhas, acessos e até dos próprios dispositivos se torna não apenas possível, mas até natural.

Isso não nasce da desconfiança. Não vem da vontade de fiscalizar. Vem da lógica do amor que amadureceu:

  • Onde A pode substituir B nos seus impedimentos;

  • Onde B pode cuidar das coisas de A como se fossem suas, porque são, de fato, bens comuns;

  • Onde a vida, os projetos, as responsabilidades e os encargos se tornam realmente partilhados.

Distinção Fundamental: o limite que protege, a amizade que libera

Por isso, é necessário traçar uma distinção clara e justa:

  • No namoro e nas fases iniciais da vida conjugal, os dispositivos são de uso pessoal, intransferíveis, protegendo a liberdade, a privacidade e a ordem de cada um. Qualquer tentativa de acessar sem consentimento é uma violação da intimidade e da dignidade.

  • No casamento amadurecido na amizade verdadeira, o compartilhamento dos acessos deixa de ser uma invasão e se torna uma expressão concreta do amor que se fez vida comum, da confiança que se fez prática cotidiana e da lealdade que se fez instituição doméstica.

Mas é preciso que se diga com toda a clareza: isso só é legítimo quando nasce da confiança mútua, não do medo, nem da insegurança, nem do desejo de controle. Quando o compartilhamento surge dessas distorções, ele é uma caricatura do amor — não sua realização.

Conclusão: o amor e a ordem das coisas

Reafirmo, portanto, com a mesma clareza com que aprendi de minha mãe:

“Carro tem que ser da pessoa. E na era digital, celular, computador e tablet também.”
Mas… quando o amor se aperfeiçoa na amizade, e apenas então, as chaves do carro, do celular, do computador e da vida se tornam, com justiça e alegria, comuns aos dois.

Essa é a ordem justa das coisas:

  • Intimidade protegida onde há risco.

  • Intimidade partilhada onde há amizade verdadeira.

E que assim se preserve a liberdade, a ordem, o amor e a paz — tanto no mundo físico quanto no mundo digital.

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