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domingo, 25 de maio de 2025

Governar é servir a Cristo em terras distantes: a formação orgânica de Portugal e do Brasil

Introdução

Quando o presidente da República Velha, Washington Luís, afirmou que “governar é abrir estradas”, talvez não soubesse que estava, consciente ou não, reproduzindo um princípio que atravessa séculos da tradição política luso-católica. Abrir estradas não é apenas um ato de infraestrutura: é o gesto inaugural da ocupação legítima do território, da conexão entre os homens e da constituição de uma economia ordenada, fundada na circulação de pessoas, bens, serviços e, sobretudo, na circulação da graça que acompanha a missão civilizatória cristã.

Este princípio não nasce no Brasil, tampouco é uma invenção da República. Ele remonta à própria formação de Portugal, cuja história, como demonstra Jaime Cortesão, é marcada pelos “fatores democráticos da sua formação”, entendendo democracia não nos termos modernos e revolucionários, mas no sentido clássico e cristão da participação orgânica de todos na vida comum, onde os poderes de usar, gozar e dispor dos bens da vida estão distribuídos segundo a ordem natural e sobrenatural.

O Brasil, como demonstra Tito Lívio Ferreira no livro “O Brasil não foi colônia”, é herdeiro direto desse modelo: um Novo Portugal, implantado além-mar, mas segundo os mesmos princípios de missão, ocupação e organização do espaço.

A Missão: Servir a Cristo em Terras Distantes

O Dicionário de Bluteau, verdadeiro espelho da mentalidade luso-católica, revela que o ato de servir a Cristo em terras distantes é mais do que pregação religiosa: é a implantação dos rudimentos de uma economia organizada, que começa, antes de tudo, no ato de lavrar o solo.

De fato, lavrar a terra é o primeiro gesto civilizatório. É a conversão do espaço selvagem em espaço humano, é a domesticação do território segundo a ordem da Criação. Mas este lavrar não é um fim em si mesmo; é parte de um projeto maior, no qual a terra é ocupada para servir a Deus, sustentar as almas e fundar comunidades onde a graça possa operar, através dos sacramentos, da vida moral, da educação e da caridade.

Por isso, a construção de igrejas, escolas, hospitais e estradas não são tarefas secundárias, mas expressões concretas da missão espiritual e temporal do povo cristão.

Governar: Abrir Estradas, Fundar Escolas, Construir Hospitais

A frase “governar é abrir estradas”, na mentalidade moderna, poderia ser reduzida ao simples desenvolvimento econômico ou à integração territorial. Mas dentro da tradição luso-católica, ela adquire uma densidade muito maior.

Abrir estradas é, antes de tudo, ligar pessoas, integrar comunidades, permitir que os frutos do trabalho sejam compartilhados e que os serviços de assistência (como escolas e hospitais) alcancem todos os cantos do território. É, portanto, uma forma de realizar concretamente aquilo que o direito natural e divino exige dos governantes: o cuidado com o bem comum.

Neste sentido, abrir estradas não se separa de fundar escolas, porque não há verdadeira liberdade sem o acesso ao saber, que ilumina a inteligência. Nem se separa de construir hospitais, porque a caridade exige o cuidado com os enfermos. E nem se separa do próprio culto a Deus, pois as estradas levam as pessoas às igrejas, aos sacramentos e às festas que ritmam a vida social segundo o calendário da graça.

Governar, portanto, é implantar no território os meios que permitem à população exercer plenamente o seu poder natural sobre os bens da vida: o poder de usar, gozar e dispor dos frutos da Criação, segundo a lei natural e divina.

Portugal e Brasil: A Formação Orgânica

Jaime Cortesão, ao falar dos fatores democráticos da formação de Portugal, mostra que desde a reconquista, a ocupação da terra foi feita através de núcleos comunitários, onde os lavradores, pescadores, artesãos e senhores participavam da construção do espaço político, econômico e espiritual. A concessão de cartas de foral, a distribuição de terras, os deveres mútuos entre rei, senhores e povo formaram uma rede de responsabilidades que estruturou o corpo político português.

Quando Portugal se lança além-mar, essa lógica não se perde. Pelo contrário, ela se projeta sobre os novos territórios. Como demonstra Tito Lívio Ferreira, o Brasil não foi uma colônia nos termos modernos — uma simples exploração metropolitana —, mas sim um Novo Portugal, onde se buscou replicar a lógica da ocupação, da missão e da constituição de núcleos cristãos estáveis.

Seja nas sesmarias, nas vilas, nas câmaras municipais ou nas irmandades, vemos a aplicação dessa mesma ordem, onde o governo não é algo alheio ou imposto, mas sim um prolongamento da vida comunitária, onde cada um tem sua parte no trabalho, na defesa e na administração dos bens comuns.

Conclusão: A Verdadeira Democracia Cristã

Dizer que governar é abrir estradas é dizer, portanto, que governar é servir a Cristo em terras distantes, porque não há verdadeira autoridade que não esteja ao serviço da missão que Deus confiou aos homens: “crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gênesis 1,28).

A verdadeira democracia, aquela que Portugal soube construir e que o Brasil herdou em sua formação, não é a tirania das massas nem o poder dos oligarcas, mas sim a ordem orgânica onde o poder de usar, gozar e dispor dos bens da vida é distribuído entre aqueles que trabalham, rezam e defendem a sua terra, segundo a lei natural e os preceitos da fé.

É essa concepção que, mesmo sob a roupagem da República, ainda ecoava na voz de um presidente que, talvez sem saber, repetia um dos mandamentos mais antigos e mais santos da civilização cristã: governar é abrir estradas. Ou, dito de outro modo: governar é servir a Cristo, ordenando a vida, o trabalho e o espaço segundo a vontade de Deus.

Bibliografia

  • BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa: Na Officina de Pascoal da Sylva, 1712-1728. (Obra fundamental para entender a mentalidade luso-católica, seus conceitos e a relação entre linguagem, fé e civilização.)

  • CORTESÃO, Jaime. Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1974. (Livro central para compreender como a formação territorial e política de Portugal se deu de modo orgânico, com participação das comunidades na vida política e econômica.)

  • FERREIRA, Tito Lívio. O Brasil Não Foi Colônia. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1960. (Obra seminal que desconstrói a narrativa moderna de que o Brasil foi uma colônia no sentido exploratório, defendendo que foi, sim, uma continuação orgânica do Reino de Portugal.)

  • SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1980. (Relevante para consulta de conceitos, datas, instituições e figuras ligadas à história luso-brasileira.)

  • SILVEIRA, Lúcio de Azevedo. Épocas de Portugal Econômico. Lisboa: Sá da Costa, 1973. (Estudo das estruturas econômicas de Portugal desde a Idade Média até o período dos Descobrimentos, fundamental para compreender a base material da expansão ultramarina.)

  • Gênesis 1,28. A Sagrada Escritura, fundamento último de toda a ordem natural e sobrenatural que rege a missão civilizatória do homem.

Fontes Complementares Sugeridas

  • MATTOSO, José. Identificação de um País – Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Estampa, 1985.

  • OLIVEIRA MARTINS, Joaquim Pedro de. História de Portugal. Lisboa: Guimarães, 1879. (Obra clássica, muito citada por Cortesão, ainda que exija uma leitura crítica.)

  • PEREIRA, Aires de Ornelas e Vasconcelos. Elementos de Direito Natural. Lisboa: Livraria Ferin, 1899. (Importante para entender a base jurídica do conceito de poder, propriedade e bem comum na tradição católica.)

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