Introdução
O processo de transição do mundo antigo pagão para a Cristandade não foi apenas uma conversão espiritual, mas também um fenômeno jurídico, político e cultural de proporções civilizacionais. A figura do imperador romano, que no período do Dominato se entendia como dominus et deus, converte-se em modelo jurídico e simbólico para a realeza cristã, sobretudo para a formação das monarquias de Direito Divino na Europa.
Este artigo tem como objetivo demonstrar como a estrutura jurídica do Dominato foi batizada no seio do Cristianismo e serviu de fundamento para a construção da Monarquia de Direito Divino. Particularmente, explora-se como esse modelo se realizou de forma eminente na história de Portugal, desde o Milagre de Ourique até sua missão evangelizadora nas províncias ultramarinas.
1. O Dominato Romano: O império como propriedade de César
O Dominato surge oficialmente com Diocleciano (284–305 d.C.), que rompe com o modelo do Principado (onde o imperador era "o primeiro entre os cidadãos") e assume uma forma absoluta de governo. No plano jurídico, o Império deixa de ser uma res publica e passa a ser, em termos práticos, propriedade privada do César, que se apresenta como dominus (senhor) e até deus.
Esse modelo jurídico reflete a centralização absoluta da autoridade e a sacralização do poder político, algo que, à luz do paganismo, tinha um fundamento mágico-religioso, porém desvinculado da verdade revelada.
2. A Conversão do Império e a Entrega do Trono ao Rei dos Reis
Com a conversão de Constantino (313 d.C.) e, mais plenamente, com Teodósio I (380 d.C.), o Império Romano reconhece oficialmente a verdade do Cristianismo. O trono imperial é, então, submetido a Cristo, o verdadeiro Divos, o verdadeiro Rei.
O imperador deixa de ser deus e passa a ser vicarius Christi, representante de Cristo na ordem temporal. O juramento imperial e as funções políticas passam a ter um sentido sacral, não mais fundado na divinização do homem, mas na submissão do homem ao Deus verdadeiro.
O Império, portanto, batiza sua própria estrutura jurídica: aquilo que no paganismo era absolutismo despótico, torna-se agora realeza serva, vassala de Cristo.
3. A Prefiguração Jurídica da Monarquia de Direito Divino
Da romanização do mundo e de sua posterior cristianização surge a ideia de que o poder vem de Deus, princípio claramente afirmado por São Paulo:
“Não há autoridade que não venha de Deus, e as autoridades que existem foram instituídas por Deus” (Rm 13,1).
Os reis cristãos não são meros chefes tribais ou primeiros cidadãos, mas lugartenentes de Cristo na Terra. O trono é uma instituição sacral, de direito divino, cujo exercício deve submeter-se à lei natural e divina.
Essa concepção não nasce no medievo, mas tem seu antecedente direto na conversão do Império Romano. O Direito Romano tardio, transformado pela fé, servirá de matriz para o desenvolvimento das monarquias cristãs, especialmente em Portugal, Espanha e França.
4. Portugal: O Reino Vassalo de Cristo
O Milagre de Ourique (1139) não é apenas um episódio militar, mas uma teofania que consagra Portugal como reino de Cristo. Segundo a tradição, Dom Afonso Henriques, diante da iminente batalha contra os mouros, vê o próprio Cristo na cruz que lhe promete vitória caso o reconheça como Senhor e Rei.
Em resposta, Dom Afonso declara-se vassalo de Cristo e funda Portugal não como um reino meramente temporal, mas como um Reino de Cristo na Terra, missão que será reafirmada sucessivamente por seus sucessores.
Este pacto dá sentido à expansão portuguesa: não se trata de mera busca por riquezas, mas do cumprimento de uma missão sagrada — fazer publicar o Santo Nome do Senhor até os confins da Terra, conforme ordena o Evangelho (Mt 28,19).
5. As províncias de além-mar como extensões da Cristandade
As possessões ultramarinas portuguesas não eram meras colônias, no sentido moderno e iluminista do termo. Eram, no plano jurídico e teológico, províncias da Cristandade, extensões do Reino de Cristo.
Este modelo se expressa de forma clara nas bulas papais, como a Romanus Pontifex (1455) e a Inter Caetera (1493), que reconhecem o direito dos reis portugueses de tomar posse dos territórios descobertos "para expansão da fé católica e serviço de Deus".
O governo dessas terras era, portanto, uma missão espiritual e jurídica: implantar a fé, a justiça, a ordem cristã e submeter os povos ao jugo doce de Cristo.
6. O Regicídio e a Ruptura do Pacto
O assassinato de Dom Carlos I (1908) e a subsequente implantação da república (1910) não são meros episódios políticos. Representam, na ordem teológica e jurídica, a ruptura do pacto entre Deus e o Reino de Portugal, selado em Ourique.
A perda da monarquia católica significou, no plano simbólico, a rejeição da realeza de Cristo sobre a nação, abrindo caminho para a secularização, a perseguição religiosa e a perda do sentido último da missão portuguesa no mundo.
Conclusão
O Dominato romano, ao transformar o Imperador em senhor absoluto, lançou sem saber as bases jurídicas que, ao serem batizadas no Cristianismo, dariam origem à Monarquia de Direito Divino. Portugal, como reino vassalo de Cristo, realizou de maneira exemplar essa síntese, até sua trágica ruptura no século XX.
A compreensão dessa dinâmica histórica é essencial para entender não apenas a história de Portugal, mas também o significado teológico e civilizacional da realeza cristã, cuja restauração é, em última análise, uma exigência da própria ordem divina.
Bibliografia
-
BIZET, Jean. O Direito Romano. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
-
BERMAN, Harold J. Direito e Revolução: A formação da tradição jurídica ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
-
DE MAISTRE, Joseph. O Papa. São Paulo: É Realizações, 2018.
-
DUHAMEL, Olivier. O Poder na História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
-
MARQUES, A. H. de Oliveira. História de Portugal – Volume I: Dos Tempos Pré-Históricos ao Fim da Idade Média. Lisboa: Palas Editores, 1972.
-
MATTOSO, José. A Identidade Nacional. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
-
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999.
-
RIVERO, Juan Vallet de Goytisolo. O Direito Público Cristão. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1983.
-
SÉRVULO CORREIA, José. Direito e Cristianismo: Uma visão histórica. Coimbra: Almedina, 2010.
-
SILVEIRA, Sidney. O Saber dos Primeiros Séculos. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário