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quinta-feira, 22 de maio de 2025

Do Dominato Romano à Monarquia de Direito Divino: a prefiguração jurídica da realeza cristã e a Missão de Portugal

Introdução

O processo de transição do mundo antigo pagão para a Cristandade não foi apenas uma conversão espiritual, mas também um fenômeno jurídico, político e cultural de proporções civilizacionais. A figura do imperador romano, que no período do Dominato se entendia como dominus et deus, converte-se em modelo jurídico e simbólico para a realeza cristã, sobretudo para a formação das monarquias de Direito Divino na Europa.

Este artigo tem como objetivo demonstrar como a estrutura jurídica do Dominato foi batizada no seio do Cristianismo e serviu de fundamento para a construção da Monarquia de Direito Divino. Particularmente, explora-se como esse modelo se realizou de forma eminente na história de Portugal, desde o Milagre de Ourique até sua missão evangelizadora nas províncias ultramarinas.

1. O Dominato Romano: O império como propriedade de César

O Dominato surge oficialmente com Diocleciano (284–305 d.C.), que rompe com o modelo do Principado (onde o imperador era "o primeiro entre os cidadãos") e assume uma forma absoluta de governo. No plano jurídico, o Império deixa de ser uma res publica e passa a ser, em termos práticos, propriedade privada do César, que se apresenta como dominus (senhor) e até deus.

Esse modelo jurídico reflete a centralização absoluta da autoridade e a sacralização do poder político, algo que, à luz do paganismo, tinha um fundamento mágico-religioso, porém desvinculado da verdade revelada.

2. A Conversão do Império e a Entrega do Trono ao Rei dos Reis

Com a conversão de Constantino (313 d.C.) e, mais plenamente, com Teodósio I (380 d.C.), o Império Romano reconhece oficialmente a verdade do Cristianismo. O trono imperial é, então, submetido a Cristo, o verdadeiro Divos, o verdadeiro Rei.

O imperador deixa de ser deus e passa a ser vicarius Christi, representante de Cristo na ordem temporal. O juramento imperial e as funções políticas passam a ter um sentido sacral, não mais fundado na divinização do homem, mas na submissão do homem ao Deus verdadeiro.

O Império, portanto, batiza sua própria estrutura jurídica: aquilo que no paganismo era absolutismo despótico, torna-se agora realeza serva, vassala de Cristo.

3. A Prefiguração Jurídica da Monarquia de Direito Divino

Da romanização do mundo e de sua posterior cristianização surge a ideia de que o poder vem de Deus, princípio claramente afirmado por São Paulo:

“Não há autoridade que não venha de Deus, e as autoridades que existem foram instituídas por Deus” (Rm 13,1).

Os reis cristãos não são meros chefes tribais ou primeiros cidadãos, mas lugartenentes de Cristo na Terra. O trono é uma instituição sacral, de direito divino, cujo exercício deve submeter-se à lei natural e divina.

Essa concepção não nasce no medievo, mas tem seu antecedente direto na conversão do Império Romano. O Direito Romano tardio, transformado pela fé, servirá de matriz para o desenvolvimento das monarquias cristãs, especialmente em Portugal, Espanha e França.

4. Portugal: O Reino Vassalo de Cristo

O Milagre de Ourique (1139) não é apenas um episódio militar, mas uma teofania que consagra Portugal como reino de Cristo. Segundo a tradição, Dom Afonso Henriques, diante da iminente batalha contra os mouros, vê o próprio Cristo na cruz que lhe promete vitória caso o reconheça como Senhor e Rei.

Em resposta, Dom Afonso declara-se vassalo de Cristo e funda Portugal não como um reino meramente temporal, mas como um Reino de Cristo na Terra, missão que será reafirmada sucessivamente por seus sucessores.

Este pacto dá sentido à expansão portuguesa: não se trata de mera busca por riquezas, mas do cumprimento de uma missão sagrada — fazer publicar o Santo Nome do Senhor até os confins da Terra, conforme ordena o Evangelho (Mt 28,19).

5. As províncias de além-mar como extensões da Cristandade

As possessões ultramarinas portuguesas não eram meras colônias, no sentido moderno e iluminista do termo. Eram, no plano jurídico e teológico, províncias da Cristandade, extensões do Reino de Cristo.

Este modelo se expressa de forma clara nas bulas papais, como a Romanus Pontifex (1455) e a Inter Caetera (1493), que reconhecem o direito dos reis portugueses de tomar posse dos territórios descobertos "para expansão da fé católica e serviço de Deus".

O governo dessas terras era, portanto, uma missão espiritual e jurídica: implantar a fé, a justiça, a ordem cristã e submeter os povos ao jugo doce de Cristo.

6. O Regicídio e a Ruptura do Pacto

O assassinato de Dom Carlos I (1908) e a subsequente implantação da república (1910) não são meros episódios políticos. Representam, na ordem teológica e jurídica, a ruptura do pacto entre Deus e o Reino de Portugal, selado em Ourique.

A perda da monarquia católica significou, no plano simbólico, a rejeição da realeza de Cristo sobre a nação, abrindo caminho para a secularização, a perseguição religiosa e a perda do sentido último da missão portuguesa no mundo.

Conclusão

O Dominato romano, ao transformar o Imperador em senhor absoluto, lançou sem saber as bases jurídicas que, ao serem batizadas no Cristianismo, dariam origem à Monarquia de Direito Divino. Portugal, como reino vassalo de Cristo, realizou de maneira exemplar essa síntese, até sua trágica ruptura no século XX.

A compreensão dessa dinâmica histórica é essencial para entender não apenas a história de Portugal, mas também o significado teológico e civilizacional da realeza cristã, cuja restauração é, em última análise, uma exigência da própria ordem divina.

Bibliografia

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