Por séculos, os povos indígenas das Américas, especialmente algumas etnias do Brasil, praticaram a antropofagia ritualística — uma prática não de barbárie, mas de caráter simbólico e espiritual. Comer o inimigo derrotado significava, na cosmologia indígena, assimilar sua força, coragem, sabedoria, atributos físicos e espirituais. Era um ritual de integração, onde se reconhecia a nobreza do adversário e, paradoxalmente, sua dignidade.
Quando olhamos para o Brasil contemporâneo, marcado por sucessivas crises morais e políticas, surge uma reflexão desconfortável e, por que não, irônica: e se, aplicando essa lógica antropofágica, os índios fossem convidados a consumir os políticos brasileiros?
A resposta, infelizmente, é que correriam sério risco de intoxicação espiritual, moral e, quem sabe, até psicológica. Porque, se é verdade que na carne mastigada se incorpora o que nela há de virtuoso, o que se assimila quando a carne é podre? Quando a carne está impregnada de vícios como corrupção, dissimulação, psicopatia, narcisismo, preguiça moral e sociopatia travestida de carisma?
A antropofagia como ato de honra
É necessário desfazer um equívoco comum: a antropofagia, nas culturas indígenas brasileiras, não era um ato de fome, selvageria ou sadismo. Era um ritual estruturado e carregado de significado.
O antropólogo Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, explica que a antropofagia entre os tupinambás e outros povos era um rito de afirmação da vida, de perpetuação da força e da honra guerreira. Comer o inimigo não era destruí-lo, mas incorporá-lo. Era dizer, em outras palavras: "Você foi digno, forte, valente. Sua força agora vive em mim."
Da mesma forma, o modernismo brasileiro, com Oswald de Andrade, ressignificou esse conceito no Manifesto Antropofágico (1928), propondo uma metáfora cultural: o Brasil, ao devorar as culturas estrangeiras, as digere e devolve algo novo, híbrido e criativo. É a síntese da identidade brasileira enquanto potência cultural.
Mas há uma condição essencial para que esse ciclo funcione: só se deve devorar aquilo que tem substância, que carrega valor.
A carne vazia da política brasileira
Aqui reside o problema. Se os rituais antropofágicos pressupõem a transferência de virtudes, o que acontece quando não há virtudes?
A classe política brasileira contemporânea, com raríssimas exceções, caracteriza-se não por virtudes guerreiras ou sabedoria cívica, mas pela prática constante da corrupção, da mentira, do aparelhamento do Estado, da criação de legislações que servem a si mesmos, não ao povo.
O Brasil tornou-se refém de uma elite política que exerce sua função não como serviço público, mas como meio de vida, fonte de enriquecimento ilícito e perpetuação de privilégios. Eles não governam: devoram o povo. É uma inversão perversa da lógica antropofágica. Aqui, são os representantes que mastigam, trituram e absorvem a energia vital do representado.
Portanto, oferecer essa carne aos rituais indígenas seria cometer um crime simbólico. O resultado não seria a aquisição de bravura, força ou sabedoria, mas a contaminação espiritual por aquilo que há de mais vil no ser humano: a traição à própria humanidade.
Quando nem o inimigo vale a pena
Na tradição guerreira indígena, havia honra até na morte. Morrer como guerreiro significava ser digno de ser devorado. Mas nossos políticos sequer merecem essa consideração. Não lutam, não trabalham, não servem. Vivem da simulação, da mentira, da exploração do cidadão. São parasitas do tecido social, vorazes, insaciáveis e profundamente inúteis fora da engrenagem que eles mesmos construíram para se beneficiar.
Pior: muitos são, sob critérios clínicos, psicopatas sociais. Não possuem empatia real, apenas a simulação dela quando lhes convém. Na vida privada e pública, tratam o outro — inclusive o povo — como objeto a ser usado, descartado e substituído.
É disso que se alimenta a máquina pública brasileira: da exploração do trabalhador, do pequeno empreendedor, do cidadão honesto, que produz, paga impostos e recebe em troca violência, precarização, miséria e escárnio.
A antropofagia invertida
Se os povos indígenas praticavam uma antropofagia ritual de incorporação das virtudes, o que o Brasil contemporâneo vive é a sua versão invertida: uma antropofagia social, onde os políticos mastigam, moem e devoram o próprio povo. E fazem isso com requintes de crueldade simbólica, oferecendo, em troca, discursos vazios, promessas que não cumprem e legislações feitas sob medida para proteger seus próprios privilégios.
O Estado brasileiro é uma máquina de devorar gente. E a classe política é a boca insaciável dessa máquina.
Conclusão: o jejum como ato de sabedoria
Diante disso, o conselho é claro: não ofereçam políticos brasileiros aos rituais de antropofagia indígena. A carne está contaminada, pútrida, espiritualmente apodrecida.
Que os povos originários façam o que sempre fizeram com maestria quando se deparam com algo inútil, perigoso e indesejável: ignorem, desprezem e deixem apodrecer sozinho.
Porque há carnes que não se come. Nem por fome. Nem por ritual. Nem por curiosidade.
Bibliografia
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Andrade, Oswald de. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, 1928.
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Gaspari, Elio. A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada (série sobre o regime militar). Companhia das Letras.
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