Resumo
Este artigo analisa os efeitos jurídicos e institucionais decorrentes da eventual aplicação da Global Magnitsky Human Rights Accountability Act (Lei Magnitsky) a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro. Argumenta-se que tal sanção internacional compromete objetivamente a dignidade, a imparcialidade e a credibilidade dos magistrados sancionados, configurando motivo suficiente para sua recusa pelos jurisdicionados e impondo, como remédio constitucional, o impeachment, nos termos do art. 52, II, da Constituição Federal. A análise se desenvolve a partir dos conceitos de dignidade da função pública, fides pública, imparcialidade objetiva, direito internacional dos direitos humanos e dos mecanismos internos de responsabilização de agentes públicos.
1. Introdução
A globalização jurídica trouxe consigo a internacionalização dos mecanismos de responsabilização de agentes públicos por violações a direitos humanos e atos de corrupção. A Global Magnitsky Human Rights Accountability Act, legislação de origem estadunidense, representa um desses instrumentos contemporâneos, possibilitando a imposição de sanções econômicas, diplomáticas e pessoais a indivíduos estrangeiros que pratiquem violações graves aos direitos humanos ou estejam envolvidos em corrupção sistêmica.
Diante da hipótese de ministros da Suprema Corte brasileira serem sancionados por tal legislação, surge uma questão central: quais são os efeitos jurídicos, institucionais e morais dessa sanção sobre o exercício da jurisdição, especialmente no que tange à imparcialidade, à dignidade do cargo e à confiança pública na instituição?
Este artigo pretende analisar essa problemática, demonstrando que o impeachment, neste caso, não é apenas uma possibilidade, mas um remédio constitucional necessário para a preservação da ordem jurídica, da moralidade administrativa e da própria dignidade da República.
2. A Lei Magnitsky: Fundamentos e Efeitos
2.1. Origens e Finalidade
A Lei Magnitsky foi promulgada em 2012 nos Estados Unidos, inicialmente para responsabilizar agentes públicos russos envolvidos na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciara um esquema bilionário de corrupção envolvendo autoridades daquele país. Posteriormente, foi ampliada para aplicação global pela Global Magnitsky Human Rights Accountability Act, sancionada em 2016.
2.2. Natureza Jurídica e Efeitos Práticos
Trata-se de um instrumento de política externa com eficácia extraterritorial, permitindo aos EUA (e a outros países que adotaram legislações semelhantes) sancionar indivíduos estrangeiros mediante:
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Congelamento de bens sob jurisdição americana;
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Proibição de entrada nos EUA;
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Restrição de transações com instituições financeiras sob influência do sistema financeiro internacional, fortemente dolarizado.
Embora formalmente seja um ato administrativo de política externa, seus efeitos transcendem as fronteiras, impactando diretamente a credibilidade e a legitimidade dos indivíduos atingidos no cenário internacional e interno.
3. A Magistratura e a Dignidade da Função Pública
3.1. A Dignidade da Magistratura como Princípio Estrutural
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, princípio que se irradia para todas as esferas do poder público. No âmbito da magistratura, a dignidade não é apenas um atributo pessoal, mas um atributo funcional, que exige dos magistrados comportamento ilibado, tanto na vida pública quanto privada, como condição para o exercício da jurisdição (art. 95, I, da CF).
3.2. Fides Pública e Imparcialidade Objetiva
O exercício da jurisdição repousa sobre dois pilares:
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Fides pública: a confiança dos jurisdicionados na integridade, imparcialidade e dignidade do julgador.
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Imparcialidade objetiva: não basta que o juiz seja subjetivamente honesto; é necessário que sua posição objetiva no mundo não comprometa a aparência de imparcialidade.
A Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Piersack v. Belgium (1982), estabeleceu que “não basta que a justiça seja feita; é necessário que ela também pareça ser feita”.
Se um magistrado é formalmente sancionado por um país soberano — especialmente sob acusação de violação de direitos humanos —, tal sanção atinge diretamente esses dois pilares, tornando insustentável a continuidade do exercício da jurisdição.
4. Efeitos Jurídicos da Sanção no Ordenamento Brasileiro
4.1. Perda da Legitimidade Funcional
Embora a Lei Magnitsky não produza efeitos jurídicos diretos no plano interno brasileiro, ela gera:
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Perda de legitimidade internacional do magistrado;
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Constrangimento diplomático ao Estado brasileiro;
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Perda de fides pública perante os jurisdicionados.
Isso compromete objetivamente a imparcialidade, condição essencial para o exercício da jurisdição.
4.2. Dever de Recusa dos Jurisdicionados
Diante da quebra objetiva da imparcialidade, qualquer cidadão pode e deve:
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Arguir a suspeição do magistrado, nos termos do art. 145 do Código de Processo Civil;
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Recusar-se, eticamente, a submeter sua causa a um julgador cuja dignidade está formalmente comprometida no cenário internacional.
Tal conduta não configura insubordinação, mas sim legítima defesa jurídica, institucional e moral.
5. O Impeachment como Remédio Constitucional Necessário
5.1. Fundamento Constitucional
O art. 52, II, da Constituição Federal atribui ao Senado Federal a competência para processar e julgar ministros do STF por crimes de responsabilidade, definidos pela Lei nº 1.079/1950 como atos que atentem contra:
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A Constituição Federal;
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O livre exercício dos poderes;
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O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
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A probidade na administração;
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A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;
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O decoro do cargo.
5.2. A Sanção Internacional como Prova Indiciária
A inclusão de um magistrado na lista da Lei Magnitsky constitui:
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Presunção qualificada de violação grave de direitos humanos ou corrupção.
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Elemento de convicção suficiente para instaurar processo de impeachment, dada a gravidade e a repercussão internacional do fato.
5.3. Preservação da Dignidade da Instituição
O STF, como órgão de cúpula do Judiciário, não pode abrigar em seus quadros indivíduos formalmente reconhecidos pela comunidade internacional como violadores de direitos. A manutenção desses indivíduos no cargo:
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Compromete a credibilidade da instituição;
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Viola o princípio republicano;
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Degrada o pacto constitucional firmado em 1988.
O impeachment, portanto, não é mero ato discricionário, mas ato-dever, imposto pela lógica da preservação institucional.
6. Conclusão
A eventual aplicação da Lei Magnitsky a ministros do Supremo Tribunal Federal rompe os fundamentos essenciais da magistratura: dignidade, imparcialidade e fides pública. Tal ruptura impõe aos jurisdicionados o direito — e até o dever — de não reconhecerem a autoridade jurisdicional de tais indivíduos, ao mesmo tempo em que obriga o Senado Federal a instaurar processo de impeachment como medida necessária para a preservação da dignidade do cargo e da própria ordem constitucional.
A República, enquanto pacto de liberdade sob o império da lei, não pode tolerar que seus juízes máximos sejam formalmente reconhecidos como violadores dos direitos humanos e da dignidade humana.
Referências Bibliográficas
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
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BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
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UNITED STATES. Global Magnitsky Human Rights Accountability Act. Public Law No: 114-328 (12/23/2016).
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PIERSACK v. BELGIUM. Application no. 8692/79. Judgment of 1 October 1982. European Court of Human Rights.
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