Introdução
A palavra milícia, oriunda do latim militia, originalmente designava o serviço militar prestado por cidadãos livres em defesa de sua comunidade, cidade ou país. Trata-se de um conceito antigo, que remonta às experiências da Roma Republicana, das cidades medievais europeias e, posteriormente, das colônias norte-americanas. A ideia de milícia estava intrinsecamente ligada à noção de cidadania ativa, onde o cidadão não apenas usufruía dos direitos civis, mas também se responsabilizava pela defesa do bem comum.
Contudo, o Brasil — particularmente o estado do Rio de Janeiro — testemunhou uma profunda e trágica deturpação deste conceito. No contexto atual, o termo milícia refere-se a organizações criminosas formadas por agentes de segurança do Estado (ativos ou exonerados), que se apropriam de territórios urbanos para exploração econômica ilícita e controle social violento. Este artigo tem como objetivo analisar essa transformação histórica e semântica, suas causas e suas consequências, à luz da história, da sociologia e da filosofia política.
1. A origem do conceito de milícia: o cidadão-soldado
O conceito de milícia surge nas tradições republicanas da Antiguidade. Na Roma Republicana, o serviço militar era dever dos cidadãos livres, proprietários de terras, que se reuniam em períodos de guerra. Eles não eram soldados profissionais, mas sim cidadãos que, movidos pelo dever cívico, defendiam a res publica — a coisa pública.
Durante a Idade Média, especialmente nas cidades livres da Europa, formaram-se milícias urbanas compostas por artesãos, comerciantes e pequenos proprietários. Estes grupos tinham a função de proteger os muros das cidades contra invasões, saques e ameaças externas, sem depender exclusivamente de exércitos mercenários.
Na tradição anglo-saxônica, o conceito de militia é central na organização social e política. A Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, nasce desse espírito, ao garantir “o direito do povo de manter e portar armas”, vinculando este direito à necessidade de uma “milícia bem regulamentada” para a segurança do Estado livre.
A milícia, portanto, historicamente, não é um grupo criminoso, mas uma expressão de soberania popular na defesa do bem comum, anterior à formação dos exércitos permanentes.
Referências Históricas:
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TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. (1920).
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ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. (1974).
-
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. (1974).
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Constituição dos Estados Unidos da América, Segunda Emenda (1791).
2. A deturpação do conceito no contexto brasileiro
No Brasil, especialmente a partir dos anos 1990, o termo milícia começa a ser utilizado para descrever grupos paramilitares formados por policiais militares, civis, bombeiros e agentes penitenciários, que passaram a controlar comunidades e favelas, principalmente no Rio de Janeiro.
Esses grupos surgem sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, mas rapidamente se transformam em organizações criminosas estruturadas, explorando atividades como:
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Cobrança de taxas de proteção (extorsão);
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Controle da distribuição de gás, água, internet e TV a cabo clandestinos;
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Transporte alternativo ilegal;
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Grilagem de terras;
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Participação direta no tráfico de drogas (o que antes diziam combater).
Ao contrário da milícia histórica, que defendia a comunidade contra ameaças externas, a milícia brasileira contemporânea submete a própria comunidade a uma lógica de exploração econômica e domínio armado, muitas vezes em conluio ou com a omissão do próprio Estado.
Esse fenômeno se tornou particularmente notório no Rio de Janeiro, onde bairros inteiros vivem sob o controle dessas organizações, que funcionam como uma espécie de Estado paralelo.
Referências Sociológicas e Jurídicas:
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FREITAS, Ignacio Cano e Thais Duarte. No Sapatinho: A Evolução das Milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Friedrich Ebert Stiftung, 2012.
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ZALUAR, Alba. Violência e Crime no Brasil. (Diversos artigos).
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LIMA, Renato Sérgio de. Segurança Pública no Brasil: Desafios e Perspectivas. (Artigos diversos).
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Relatórios do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) sobre milícias.
3. A inversão moral do conceito
Do ponto de vista filosófico e ético, o que ocorre é uma inversão radical da função social do conceito de milícia. Aquilo que originalmente se fundamentava no amor à pátria, na defesa da liberdade, na proteção da comunidade e no dever cívico, hoje se manifesta como uma forma de servidão interna, opressão local e captura da sociedade civil por agentes armados.
Essa inversão não é fruto do acaso. Ela está associada a três grandes fatores estruturais:
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A falência do Estado brasileiro em garantir segurança pública de forma eficiente, justa e universal;
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A cultura da impunidade, que permite que agentes do próprio Estado cruzem facilmente a linha entre legalidade e ilegalidade;
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O vácuo moral provocado pela decadência das instituições políticas, jurídicas e educacionais, que deveriam formar cidadãos virtuosos e servidores públicos comprometidos com o bem comum.
Na tradição clássica do pensamento político, desde Aristóteles até Santo Tomás de Aquino, o bem comum é o fundamento da vida política. Quando uma organização abandona esse princípio, ela deixa de ser legítima, tornando-se uma forma de tirania, de banditismo organizado — o que é exatamente a milícia carioca contemporânea.
Referências Filosóficas:
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ARISTÓTELES. Política.
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SANTO TOMÁS DE AQUINO. De Regno (Sobre o Governo dos Príncipes).
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ROYCE, Josiah. A Filosofia da Lealdade (1908).
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MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado (1951).
Conclusão
O termo milícia, que em sua origem expressava a nobre função do cidadão-soldado, defensor do bem comum, hoje, no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, foi completamente pervertido. A palavra passou a designar não defensores da comunidade, mas seus algozes.
A compreensão dessa evolução não é mero exercício semântico ou acadêmico. Trata-se de entender como a degradação das instituições, da cultura política e da própria ideia de bem comum permite que conceitos que deveriam enobrecer a vida social se convertam em instrumentos de opressão.
Recuperar a dignidade original do conceito — seja ele aplicado ou apenas compreendido historicamente — exige uma reflexão profunda sobre as responsabilidades do Estado, da sociedade civil e da formação moral dos indivíduos.
Bibliografia Recomendada
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ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
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ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1985.
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AQUINO, Tomás de. De Regno — Sobre o Governo dos Príncipes. Lisboa: Edições 70, 2005.
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CANO, Ignacio; DUARTE, Thais. No Sapatinho: A Evolução das Milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Friedrich Ebert Stiftung, 2012.
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CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
-
FREITAS, Ignacio Cano. Seis Por Meia Dúzia? Um Estudo Exploratório do Fenômeno das Milícias na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 2008.
-
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1996.
-
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
-
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Holt, 1920.
-
ZALUAR, Alba. Violência e Crime no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
-
Constituição dos Estados Unidos da América (1791).
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