A arte da negociação é uma das expressões mais reveladoras da cultura de um povo. Assim como o idioma e a culinária, os métodos de se chegar a um acordo dizem muito sobre os valores, as prioridades e até a visão de mundo de uma sociedade. Comparar estilos de negociação pode ser, portanto, uma maneira eficaz de entender civilizações inteiras — e, ao fazer isso, percebemos o quanto algumas figuras contemporâneas incorporam tradições culturais antigas, mesmo sem declará-lo explicitamente. Donald Trump, por exemplo, com seu estilo agressivo e teatral de negociar, remete muito mais aos mercados árabes do que às salas silenciosas de Tóquio ou aos escritórios bem iluminados de Londres.
O Estilo Árabe: o teatro da barganha
Nos mercados do mundo árabe — sejam eles no Cairo, em Marrakech ou em Dubai — a negociação não é uma etapa do processo de compra: ela é o processo. O preço inicial é muitas vezes simbólico, estabelecido em um patamar artificialmente alto, como um convite à dança da barganha. O comprador responde com uma oferta muito mais baixa, e o jogo começa.
Essa dinâmica não se resume a uma estratégia econômica, mas é também uma forma de socialização. Os árabes valorizam a habilidade de argumentar, rir, dramatizar, encenar. Em certas regiões, se um cliente aceita o primeiro preço sem negociar, o vendedor se sente insultado: não porque lucrou menos, mas porque o ritual foi quebrado. É como se o cliente tivesse recusado uma oferta de amizade ou desdenhado da cultura local.
Donald Trump, com seu hábito de abrir negociações com propostas extremas — muitas vezes vistas como absurdas por seus adversários — utiliza uma forma modernizada dessa lógica. Seu objetivo não é ser realista na primeira oferta, mas provocar uma reação, testar o oponente, puxar a âncora para seu lado.
O Estilo Japonês: harmonia antes do acordo
Em contraste, o estilo japonês de negociação é marcado por wa — a harmonia. Os japoneses valorizam o consenso, a preparação meticulosa e o respeito mútuo. Antes mesmo de entrar na sala de reunião, os negociadores já fizeram inúmeras consultas internas, construíram confiança por meio de jantares, presentes e gestos de cortesia. Na mesa de negociação, evita-se o confronto direto. Dizer “não” é raro; em vez disso, usa-se o silêncio, a ambiguidade ou frases suaves para indicar discordância.
Num ambiente como esse, o estilo de Trump ou o árabe tradicional soaria como uma agressão. A barganha aberta e teatral poderia ser vista como uma afronta, pois rompe com a busca pela estabilidade emocional do grupo. Os japoneses prezam pela face — menboku — e forçar uma concessão explícita pode ferir irremediavelmente a relação.
O Estilo Anglo-Saxônico: pragmatismo e contrato
No mundo anglo-saxão — especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido — a negociação tende a ser mais direta, porém dentro de parâmetros profissionais bem definidos. O objetivo é chegar a um acordo que possa ser claramente redigido em contrato. Há menos espaço para teatralidade ou códigos implícitos; o que se diz é o que se pretende. Concessões são feitas com base em dados, em benchmarks de mercado, e não tanto em gestos simbólicos.
Ainda assim, o negociador anglo-saxão respeita o fair play. A barganha agressiva pode funcionar, mas se for percebida como manipulação, poderá comprometer a confiança. Aqui, Trump já entra em conflito com sua própria cultura: seu estilo "à la souk" muitas vezes é visto, nos círculos corporativos convencionais, como truculento ou pouco profissional. Mesmo assim, para sua base política, isso é um sinal de força — ele aparece como o americano que sabe jogar duro, inclusive com estrangeiros.
Conclusão: o mapa cultural da negociação
Negociar é mais do que definir preços ou fechar acordos. É entrar num teatro cultural onde cada gesto, cada palavra e até cada silêncio carrega significados profundos. O estilo árabe valoriza a barganha como expressão de identidade; o japonês, a harmonia como sinal de respeito; o anglo-saxão, a clareza como meio de confiança.
Ao entender essas diferenças, evitamos julgamentos apressados e abrimos espaço para estratégias mais eficazes em ambientes internacionais. E também compreendemos melhor certas figuras contemporâneas — como Trump — que, ainda que formadas no Ocidente, muitas vezes utilizam métodos que dialogam com tradições milenares de outras civilizações.
Bibliografia recomendada
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HOFSTEDE, Geert. Cultures and Organizations: Software of the Mind.
Uma das obras mais influentes sobre diferenças culturais no mundo dos negócios. Hofstede introduz dimensões culturais (como individualismo vs. coletivismo, aversão à incerteza, etc.) que ajudam a compreender o contraste entre estilos de negociação em diferentes países. -
LEWICKI, Roy J.; BARRY, Bruce; SAUNDERS, David M. Negotiation.
Livro didático amplamente utilizado em cursos de administração e relações internacionais. Explica métodos de negociação distributiva e integrativa, com estudos de caso que revelam as diferenças culturais no processo. -
FISHER, Roger; URY, William. Getting to Yes: Negotiating Agreement Without Giving In.
Um clássico da Escola de Harvard, este livro introduz a ideia de negociação baseada em princípios. Embora centrado na lógica anglo-saxônica, é útil para entender como os americanos (especialmente no mundo dos negócios) tendem a negociar de forma pragmática e objetiva. -
BRETT, Jeanne M. Negotiating Globally: How to Negotiate Deals, Resolve Disputes, and Make Decisions Across Cultural Boundaries.
Obra dedicada especificamente à negociação intercultural, com capítulos sobre o estilo árabe, japonês, latino-americano, entre outros. Excelente para aprofundar os pontos do seu artigo. -
COHEN, Raymond. Negotiating Across Cultures: Communication Obstacles in International Diplomacy.
Uma perspectiva mais voltada à diplomacia internacional. Cohen mostra como os estilos de negociação refletem formas culturais de pensar, ouvir e decidir — muito útil para compreender os japoneses e os árabes, em contraste com os ocidentais. -
HALL, Edward T. The Silent Language.
Obra pioneira na antropologia da comunicação, apresenta os conceitos de "alto contexto" e "baixo contexto" — fundamentais para entender por que os japoneses evitam confrontos verbais diretos e os anglo-saxões tendem a valorizar a clareza explícita. -
TRUMP, Donald J. The Art of the Deal.
Embora não seja uma obra acadêmica, este livro autobiográfico fornece insights diretos sobre a maneira como Trump enxerga e pratica negociações. Ao lê-lo à luz dos estilos tradicionais de barganha, especialmente do mundo árabe, percebe-se a afinidade estrutural.
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