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quinta-feira, 22 de maio de 2025

Da Monarquia Sacral à Democracia Revolucionária: A Wolna Elekcja como Matriz Esquecida do Iluminismo

Introdução

A origem da modernidade é um problema que poucos ousam encarar em sua real profundidade. Historiadores acadêmicos costumam fixar-se em marcos convencionais — como a Revolução Gloriosa, a Revolução Francesa ou a Independência Americana — sem jamais rastrear, até sua fonte, os processos internos de degeneração que corroeram a ordem civilizacional anterior.

Contudo, ao seguir o método indicado por Olavo de Carvalho, que exige rastrear os fenômenos até seus princípios formadores, deparamos com um episódio muitas vezes negligenciado, mas de suma importância: o fenômeno da Wolna Elekcja, a livre eleição da monarquia polonesa, instaurada no século XVI na República das Duas Nações (Rzeczpospolita Obojga Narodów).

Esse modelo de governo, frequentemente interpretado como uma inovação democrática para seu tempo, na realidade representa uma transição perversa da monarquia sacral para um regime aristocrático degenerado, que, com o tempo, se desdobrará naquilo que hoje chamamos, de modo equívoco, de "democracia moderna".

A tese que aqui se propõe é clara: o Iluminismo e a democracia liberal moderna são cópias degradadas e racionalizadas desse modelo aristocrático polonês, que, por sua vez, é a caricatura de uma ordem monárquica-sacral que havia perdido sua substância espiritual.

I. A Crise da Monarquia e o Nascimento da Wolna Elekcja

A morte de Sigismundo II Augusto, em 1572, sem deixar herdeiros, mergulhou a Polônia e a Lituânia numa crise dinástica. Mas, diferentemente das monarquias tradicionais da Europa, que solucionavam tais crises reafirmando o princípio da sucessão dinástica, a República optou por um caminho distinto: a institucionalização da eleição do rei por voto direto da nobreza.

Esse evento não surge do nada. Ele é o ponto culminante de um processo anterior, no qual a nobreza polonesa, protegida por uma sucessão de privilégios, foi adquirindo progressivamente controle sobre o poder real. Desde o século XIV, com os Privilégios de Koszyce (1374) e, depois, com os Privilégios de Nihil Novi (1505), a nobreza já havia imposto severas limitações à autoridade régia.

O rei, outrora expressão visível do poder de Deus na terra — princípio que ancorava não só a legitimidade política, mas a própria coesão espiritual da sociedade —, tornou-se, a partir da Wolna Elekcja, um funcionário da oligarquia nobiliárquica, eleito para executar seus interesses.

II. A Democracia Aristocrática como Etapa de Degeneração

No discurso corrente, a livre eleição é frequentemente celebrada como uma antecipação da democracia moderna. Contudo, uma análise mais acurada revela que esse modelo não era uma democracia no sentido moderno, mas uma oligarquia travestida de república, onde o conceito de “cidadão” restringia-se a uma casta hereditária, a szlachta, que correspondia a aproximadamente 8% da população.

A Wolna Elekcja rompe com dois princípios fundamentais da monarquia tradicional:

  1. A legitimidade sacral do rei, mediador entre Deus e o povo, cuja autoridade se fundava na lei divina e na continuidade dinástica.

  2. A unidade orgânica do corpo político, estruturado hierarquicamente sob a coroa, que garantia que as partes estivessem ordenadas ao todo.

No lugar desses princípios, emerge uma concepção horizontalizada do poder, em que o rei é reduzido a representante de interesses privados, negociados através dos Pacta Conventa e submetido aos Artigos Henricianos, que impunham limites severos à ação régia.

O próprio processo eleitoral, que em sua formalidade parecia um ritual de soberania popular, na prática se degenerava em:

  • Corrupção endêmica, através de compra de votos e suborno de nobres.

  • Intervenção de potências estrangeiras, como Rússia, Áustria, Suécia e França, que manipulavam as eleições em favor de seus próprios candidatos.

  • Polarização social, que frequentemente resultava em guerras civis abertas, como na eleição de 1587.

A Polônia, portanto, inaugura uma forma embrionária de parlamentarismo aristocrático, onde o poder não é mais uma emanação do sagrado, mas um produto de interesses negociados entre elites rivais, internas e externas.

III. O Iluminismo: A Perpetuação e Radicalização do Modelo Polonês

O salto histórico que leva da Wolna Elekcja ao Iluminismo francês não é direto, mas é estrutural. A operação mental é idêntica:

  • Onde a nobreza polonesa dizia: “Somos nós, os nobres, que fazemos o rei”, o Iluminismo proclama: “Somos nós, os cidadãos, que fazemos o governo” — mas esse “cidadão” iluminista não é o povo real, encarnado em sua vida concreta, mas um indivíduo abstrato, despojado de vínculos tradicionais, de hierarquias e de transcendência.

  • O rei eleito da Polônia, limitado por pactos e contratos, é o embrião do governante constitucional moderno, cuja autoridade é derivada, não de uma ordem superior, mas de um contrato social artificial, produto da vontade de uma coletividade.

  • A supressão do rei como representante do sagrado na Terra gera, inevitavelmente, um vazio metafísico que será preenchido, no Iluminismo, por a nova religião da Razão, da Vontade Geral e do Progresso, que reproduz, na ordem secular, os mecanismos da antiga eleição régia — agora aplicados a parlamentos, presidentes, assembleias e constituições.

O que a nobreza polonesa fazia abertamente, como casta senhorial, o Iluminismo generaliza, mascarando-o como “igualdade formal”. A aristocracia de sangue é substituída pela aristocracia do capital, da instrução e do controle dos meios de comunicação.

IV. A “Democracia” Moderna como Herança Pervertida

A sequência lógica é inexorável:

  1. A monarquia sacral (governo como reflexo da ordem divina).

  2. Degenera na oligarquia aristocrática, como na Polônia.

  3. Transforma-se na oligarquia democrática moderna, onde a “vontade do povo” é, na prática, a máscara legitimadora de elites econômicas, midiáticas e burocráticas.

A democracia liberal não destrói a aristocracia: ela a substitui por uma aristocracia invisível, que não responde mais nem a Deus, nem à Tradição, nem ao povo concreto, mas apenas aos mecanismos abstratos do mercado, do Estado e da ideologia.

Conclusão: A Lição Esquecida

A Wolna Elekcja não é um acidente isolado da história polonesa. Ela é um protótipo do mundo moderno, cuja lógica se repete, com roupagens diferentes, nas revoluções iluministas, no liberalismo constitucional e, por fim, nas democracias de massa contemporâneas.

O que começou como a rebelião de uma aristocracia contra a ordem sagrada da monarquia termina, séculos depois, como a rebelião da humanidade contra a própria ordem metafísica da realidade.

Recuperar essa genealogia não é apenas um exercício acadêmico. É um imperativo filosófico e espiritual para quem deseja compreender por que o mundo moderno, em sua ânsia de emancipação, se entrega, cada vez mais, ao vazio, à desordem e à tirania disfarçada de liberdade.

Bibliografia Recomendada

História e Política

  • Frost, Robert I. The Oxford History of Poland-Lithuania, vols. 1 e 2. Oxford University Press.

  • Davies, Norman. God's Playground: A History of Poland, vol. 1. Oxford University Press.

  • Augustyniak, Urszula. Wazowie i „Rzeczpospolita”. Neriton, Warszawa, 2006.

Filosofia e Crítica da Modernidade

  • Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições. Vide Editorial.

  • Voegelin, Eric. A Nova Ciência da Política. É Realizações.

  • Christopher Dawson. A Crise da Civilização Ocidental. É Realizações.

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