Introdução
Poucos sabem, mas o embrião daquilo que hoje conhecemos como "democracia moderna" não nasceu nas revoluções iluministas do século XVIII, mas na lenta e silenciosa corrosão da monarquia sacral cristã, que, em certos contextos europeus, foi degenerando em oligarquias aristocráticas.
O exemplo paradigmático dessa degeneração é a República das Duas Nações — a união política da Polônia e da Lituânia —, onde, a partir do século XVI, a antiga monarquia de direito divino cede lugar a uma monarquia eletiva aristocrática, marcada pela fragilidade, pela corrupção interna e pela crescente influência estrangeira. Este processo culminará, séculos depois, na própria aniquilação do Estado polonês.
No extremo oposto desse fenômeno está Portugal, cuja fundação, a partir do Milagre de Ourique, estabelece uma monarquia sacral, teomônica, fundamentada no Santo Espírito de Deus, que não só resistirá às tentações da aristocratização do poder, como expandirá sua ordem civilizacional por todos os continentes, levando consigo, junto das caravelas, uma cosmovisão orgânica, católica e missionária.
Este artigo pretende, portanto, mostrar como os destinos de Polônia e Portugal representam dois caminhos opostos diante da crise da Cristandade medieval: um conduz à desintegração; o outro, à expansão da ordem cristã pelo mundo.
I. A Polônia e a Degeneração da Monarquia Sacral
Após a morte de Sigismundo II Augusto, em 1572, a República das Duas Nações adotou um modelo inédito na Europa: a Wolna Elekcja (Livre Eleição). Por esse sistema, qualquer membro da nobreza (szlachta) podia votar diretamente na escolha do rei. Na superfície, parecia uma antecipação da democracia. Na essência, era a transformação da soberania de um princípio metafísico — encarnado na figura do rei como vicário de Deus — em um contrato entre uma casta aristocrática e um governante reduzido a executor dos interesses de facções nobiliárquicas.
O resultado foi:
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A progressiva subordinação do poder régio às vontades privadas da aristocracia.
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A corrosão da autoridade central e do princípio da unidade espiritual do reino.
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A transformação das eleições em arenas de corrupção, suborno, chantagem e intervenção estrangeira.
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Uma série de guerras civis, decadência política e, finalmente, as partições da Polônia, que desaparece do mapa da Europa por mais de um século.
O que se rompe aqui não é apenas um arranjo político, mas o próprio fundamento teológico da monarquia cristã, cuja natureza é sacramental, não contratual.
II. Portugal: A Ordem do Santo Espírito
Se na Polônia a monarquia sucumbe à aristocratização, em Portugal ela se fortalece na sua origem sacral. No Milagre de Ourique (1139), Dom Afonso Henriques é investido diretamente por Cristo como rei. Este não é um episódio meramente simbólico, mas a fundação teológica da monarquia portuguesa, que passa a entender a si mesma como instrumento visível da Providência na história.
A diferença essencial é que, em Portugal:
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O rei não é eleito por nobres, mas instituído por Deus para reger o povo em Seu nome.
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A autoridade real está vinculada não a interesses de classe, mas ao bem comum ordenado segundo a Lei de Deus.
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A participação popular ocorre sim, mas dentro de uma ordem hierárquica, orgânica e sacramental, onde as câmaras municipais, os concelhos e as cortes são expressões da unidade do corpo político, não da soberania dispersa dos indivíduos ou das classes.
Essa estrutura não só garante a estabilidade interna, como permite que Portugal, ao longo dos séculos, expanda essa mesma ordem social para além de suas fronteiras geográficas.
⚓ As Caravelas Levavam uma Civilização, Não um Império Colonial
A fundação da vila de São Vicente, em 1532, no Brasil, com eleições para as câmaras municipais, comprova que o projeto português não era um projeto colonial no sentido moderno, mas a expansão de uma ordem civilizacional cristã.
Se Portugal fosse meramente uma potência colonial — como Inglaterra, Holanda ou França mais tarde —, teria exportado apenas:
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Burocracia
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Militares
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Estruturas de exploração econômica
O que Portugal leva é infinitamente mais profundo:
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Leva o direito português, com seus forais e tradições.
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Leva a Igreja Católica, não como um apêndice, mas como alma da vida social e política.
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Leva a organização comunitária, com eleições locais, juízes, vereadores, provedores e irmãos da misericórdia.
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Leva o sino, o altar e a cruz, que são tão ou mais importantes do que as espadas e os mastros das caravelas.
Cada vila fundada no ultramar português é, na verdade, uma prolongação da Cristandade ocidental, transplantada integralmente, corpo e alma.
III. Fatores Democráticos vs. Degeneração Democrática
O historiador Jaime Cortesão, quando fala dos fatores democráticos na formação de Portugal, não está se referindo à democracia no sentido moderno, revolucionário, igualitário e contratual. Está falando da democracia orgânica, própria da Cristandade:
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Onde a participação política é expressão da inserção natural dos homens em seus corpos sociais: família, freguesia, município, corporação, reino.
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Onde a liberdade não é um direito absoluto do indivíduo, mas a possibilidade de cada um cumprir seu dever dentro da ordem que Deus estabeleceu.
O que na Polônia degenerou em uma aristocracia desordenada, e depois foi transmutado no racionalismo revolucionário do Iluminismo, em Portugal permaneceu como uma tradição viva, cuja expansão missionária se deu simultaneamente pela cruz, pela língua, pelo direito e pela organização social.
IV. Civilização Missionária ou Colonialismo Secular?
Aqui está o ponto decisivo:
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Portugal não foi um império colonial no sentido moderno.
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Foi uma civilização missionária, cuja função era prolongar no espaço a ordem cristã que o Santo Espírito fundou em Ourique.
Por isso há eleições no Brasil desde 1532. Por isso há câmaras municipais, forais, irmandades e procissões. Porque as caravelas não levavam apenas mercadores e soldados — levavam uma ordem espiritual inteira, refletida no direito, na cultura, na religião e na vida cotidiana.
Se Portugal fosse apenas uma potência econômica, como as nações protestantes, isso não teria acontecido.
Conclusão
Enquanto a Polônia degenera da monarquia sacral para uma aristocracia dissolvente, que prepara o caminho para sua própria destruição e antecipa, em miniatura, os vícios da modernidade revolucionária, Portugal permanece fiel à sua origem sacral, confirmando no mundo o que foi firmado sobrenaturalmente em Ourique.
O que naufragou na modernidade — e que hoje se apresenta sob a forma de democracias liberais, dissolução social, ditaduras do capital e do tecnicismo — não é senão a radicalização da lógica aristocrática degenerada da Polônia, mascarada de “soberania popular”.
O caminho de Portugal, ao contrário, lembra ao mundo que é possível existir uma sociedade política onde:
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A autoridade é sagrada.
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A liberdade é ordenada.
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A participação política é expressão do corpo social orgânico, não do indivíduo isolado, nem de classes dominantes.
Se o mundo tivesse seguido Portugal — e não a França revolucionária ou a Polônia aristocratizada —, a história da modernidade teria sido outra.
📚 Bibliografia Recomendada
Sobre Portugal e sua fundação sacral
-
Jaime Cortesão, Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal.
-
António Sardinha, A Teoria da Monarquia Portuguesa.
-
Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições.
-
Oliveira Martins, História de Portugal.
-
Manuel de Oliveira Ramos, A Formação de Portugal.
Sobre a República das Duas Nações
-
Robert I. Frost, The Oxford History of Poland-Lithuania (Vols. 1 e 2).
-
Norman Davies, God’s Playground: A History of Poland.
-
Urszula Augustyniak, Wazowie i „Rzeczpospolita”.
Filosofia da História e Crítica da Modernidade
-
Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política.
-
Christopher Dawson, A Crise da Civilização Ocidental.
-
Olavo de Carvalho, O Imbecil Coletivo e O Jardim das Aflições.
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