Introdução
É pouco conhecido do grande público que, em meados do século XVII, o território que hoje compreende o Brasil esteve sob séria ameaça de domínio holandês. Em 1624, as Províncias Unidas dos Países Baixos — já em guerra com a Monarquia Hispânica no contexto da chamada Guerra dos Oitenta Anos (1568–1648) — lançaram uma ofensiva contra a então capital do Brasil português: Salvador da Bahia de Todos os Santos. Este episódio inscreve-se em um cenário geopolítico mais amplo, no qual o Brasil integrava a estrutura administrativa e militar da Coroa Hispânica, em virtude da União Ibérica iniciada em 1580 sob o reinado de Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal).
O Contexto Imperial: Brasil sob a Monarquia Hispânica
Com a ascensão de Felipe II ao trono português em 1580, após a crise dinástica causada pela morte do cardeal D. Henrique, os reinos de Portugal e Espanha foram unificados sob uma mesma soberania, formando a chamada Monarquia Hispânica. Assim, entre 1580 e 1640, o vasto império ultramarino português — incluindo o Brasil — ficou sob controle dos Habsburgos espanhóis, ainda que com relativa autonomia administrativa local.
Salvador da Bahia, fundada em 1549, não era apenas uma capital colonial; tratava-se de um dos principais centros administrativos, militares e econômicos do império atlântico luso-hispânico. Sua importância estratégica advinha do escoamento de açúcar, pau-brasil e outros produtos tropicais em direção ao mercado europeu. Por essa razão, a cidade tornou-se um alvo prioritário da Companhia das Índias Ocidentais, criada pelos holandeses com o objetivo explícito de enfraquecer o monopólio ibérico nos mares e nas colônias americanas.
A Ocupação Holandesa de 1624
No ano de 1624, uma expedição militar composta por cerca de 26 navios e 3.500 homens, sob comando do almirante Jacob Willekens e do vice-almirante Pieter Heyn, partiu das Províncias Unidas rumo ao Atlântico Sul. A força holandesa conseguiu capturar Salvador com relativa facilidade. O governador português da cidade, Diogo de Mendonça Furtado, foi aprisionado e as autoridades coloniais locais foram rapidamente subjugadas.
A cidade foi incorporada ao domínio da Companhia das Índias Ocidentais, e os invasores iniciaram um processo de fortificação e consolidação do controle. Entretanto, o domínio holandês encontrou resistência significativa nas redondezas da capital, especialmente na região do Rio Vermelho, onde luso-brasileiros, clérigos e camponeses organizaram guerrilhas e operações de sabotagem.
A Resposta da Monarquia Hispânica: A Jornada ao Brasil
A notícia da ocupação de Salvador repercutiu intensamente na Corte espanhola. O monarca Felipe IV, então rei de Espanha e Portugal, autorizou uma operação militar de grande envergadura. O comando da expedição foi confiado a Fadrique de Toledo Osorio, Capitão-Geral da Armada do Mar Oceano, veterano de guerra e conhecido por sua eficácia em combates navais.
A operação, denominada Jornada ao Brasil, contou com a participação de aproximadamente 12.000 homens e mais de 50 embarcações — um dos maiores empreendimentos navais da época. A força era composta por Terços espanhóis, tropas portuguesas, marinheiros e apoio papal. O objetivo era claro: restaurar a soberania da Monarquia Hispânica sobre a capital brasileira.
A travessia do Atlântico, feita sem os recursos modernos de navegação, já representava um feito logístico notável. Enfrentando riscos de doenças, tempestades e insubordinação, a armada chegou à costa brasileira em abril de 1625.
O cerco e a reconquista de Salvador
Ao alcançar Salvador, os hispano-portugueses encontraram a cidade fortemente guarnecida. Iniciou-se então um cerco prolongado, envolvendo bombardeios constantes a partir da baía, cortes de suprimentos e ataques coordenados por terra. A ofensiva não consistiu em simples bloqueio, mas sim em uma série de combates intensos, nos quais a superioridade numérica e logística dos exércitos ibéricos foi decisiva.
Os holandeses tentaram buscar apoio externo, inclusive de corsários franceses e de populações indígenas aliadas, mas tais reforços não chegaram a tempo. Após semanas de resistência, em 1º de maio de 1625, os holandeses capitularam e Salvador foi retomada pela Monarquia Hispânica.
Consequências e Representação Historiográfica
A recuperação de Salvador da Bahia constituiu uma vitória simbólica e estratégica. Representou a contenção da expansão colonial holandesa e reafirmou a capacidade da Coroa Hispânica de projetar poder transatlântico mesmo em tempos de crise. A vitória foi celebrada em Lisboa, Madri e Roma, sendo inclusive representada por Juan Bautista Maíno, pintor da corte, em sua obra La Recuperación de Bahía de Todos los Santos, atualmente exposta no Museu do Prado.
Contudo, esse episódio permanece relativamente obscuro na historiografia popular e nos currículos escolares, frequentemente eclipsado pela chamada "visão decadente" do império espanhol no século XVII. Na realidade, a batalha pela Bahia refuta essa narrativa: revela uma potência capaz de coordenar operações intercontinentais e de enfrentar, com sucesso, desafios à sua hegemonia global.
📚 Bibliografia Recomendada
-
Boxer, Charles R. – A Conquista e a Colonização dos Trópicos (Brasil, Angola, Goa). Companhia das Letras.
-
Oliveira, Evaldo Cabral de Mello – O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Editora Topbooks.
-
Saraiva, José Hermano – História Concisa de Portugal. Europa-América.
-
Schwartz, Stuart B. – Sovereignty and Society in Colonial Brazil. University of California Press.
-
Prado, Maria Ligia Coelho – A Questão Colonial na América Latina. Atual.
-
Museu do Prado – Registro oficial da obra La Recuperación de Bahía, por Juan Bautista Maíno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário