Enquanto multinacionais americanas mantêm sua identidade distante, duas marcas argentinas se tornaram quase brasileiras — e nos mostram uma nova forma de fazer sucesso em terra alheia.
O Brasil é historicamente um mercado cobiçado por multinacionais, mas também um dos mais difíceis de se conquistar. Muitas empresas estrangeiras, sobretudo americanas, ainda hoje operam como quem pisa em território alheio: falam uma língua diferente (no marketing e na mentalidade), mantêm centros de decisão no exterior e, por vezes, parecem ignorar a complexidade e a cultura local. Nesse cenário, um fenômeno silencioso vem chamando atenção: duas empresas argentinas, o Mercado Livre e a Havanna, vêm ganhando terreno e afeto entre os brasileiros de uma forma que poucas multinacionais conseguiram.
O Mercado Livre e o segredo da nacionalização invisível
Fundado na Argentina em 1999, o Mercado Livre chegou ao Brasil com a proposta de ser um marketplace acessível para pessoas comuns. Com o tempo, o que era apenas uma plataforma de anúncios se transformou em um ecossistema completo de comércio digital, pagamentos e logística, com braços como o Mercado Pago e o Mercado Envios. Mas o segredo do seu sucesso não está apenas nos serviços — está no modo como a empresa se abrasileirou.
Ao contrário de empresas americanas como Amazon, Apple ou Uber, o Mercado Livre não impôs um modelo pronto. Ele se construiu a partir da escuta do mercado brasileiro, apostou em infraestrutura própria, centros de distribuição locais, promoções em datas típicas, integração com bancos e carteiras digitais populares. Hoje, muita gente nem sabe que a empresa é argentina — e isso é o maior elogio que se pode fazer à sua estratégia de internacionalização.
Havanna: doce estratégia de afeto
A Havanna, tradicional doceria argentina conhecida por seus alfajores e doce de leite, segue o mesmo caminho. Enquanto outras marcas importadas tentam entrar no Brasil com um apelo de exclusividade e sofisticação, a Havanna se posiciona como algo familiar e próximo. Suas lojas — muitas vezes em shoppings, aeroportos ou quiosques de alto fluxo — oferecem não apenas produtos, mas uma experiência afetiva: um café, um doce, uma pausa. O sabor é estrangeiro, mas o acolhimento é brasileiro.
Além disso, a marca aposta em um imaginário comum entre brasileiros e argentinos: a paixão por doces, o valor da tradição, o prazer em saborear. Ao invés de reforçar a distância cultural, a Havanna aposta na proximidade sensorial.
O que essas empresas entenderam que as outras não?
O caso de Mercado Livre e Havanna revela uma verdade que muitas multinacionais ainda ignoram: ser estrangeiro não é problema, desde que você compreenda e respeite a alma do lugar onde está entrando. Mais do que adaptar o idioma, é preciso adaptar o espírito.
Empresas americanas tendem a operar com rigidez, com foco em padronização e escalabilidade global. Isso pode funcionar em mercados homogêneos, mas no Brasil — com suas desigualdades regionais, códigos culturais complexos e hábitos próprios — flexibilidade, escuta e inserção local são diferenciais inegociáveis.
Além disso, essas empresas argentinas souberam aproveitar o fato de que a Argentina, culturalmente, não é percebida como uma ameaça imperialista, mas sim como uma vizinha com hábitos semelhantes, com a qual o Brasil mantém uma relação ambígua de rivalidade e admiração. Nesse sentido, o sotaque portenho soa até simpático.
A tática jesuíta: a catequese como modelo de mercado
Curiosamente, a tática dessas empresas guarda semelhanças com a estratégia dos jesuítas na catequese dos indígenas durante o período colonial. Os jesuítas não começaram impondo a língua portuguesa ou a cultura europeia. Pelo contrário: aprenderam as línguas nativas, estudaram os costumes, viveram entre os povos, e só então começaram a transmitir seus ensinamentos religiosos, usando imagens, metáforas e rituais compreensíveis dentro da cosmovisão indígena.
Esse processo, chamado de inculturação, consiste em entrar profundamente em uma cultura, assumir seus códigos simbólicos e, a partir de dentro, propor uma transformação duradoura. Não se trata de destruir o que existe, mas de fazer-se próximo, fazer-se igual, para então influenciar.
É exatamente isso que o Mercado Livre e a Havanna fizeram no Brasil: não chegaram como colonizadores, mas como missionários discretos. Falaram a nossa língua, se inseriram no nosso cotidiano, nos ofereceram soluções com rosto local — e, assim, transformaram nosso comportamento de consumo sem que percebêssemos a origem estrangeira da transformação.
A diferença essencial: presença e paciência
O que une jesuítas e empresas como Mercado Livre e Havanna é a estratégia da presença encarnada. Em vez de dominar pelo poder, elas transformam pelo convívio, pelo exemplo, pelo serviço. Entram em silêncio, constroem aos poucos, e conquistam pela autoridade discreta de quem vive, sofre e cresce junto.
Enquanto empresas americanas tentam converter o mercado à sua imagem e semelhança, muitas vezes com pressa e arrogância, as argentinas adotaram um método mais antigo — e mais eficaz: entrar na cultura local como discípulas, para depois, quem sabe, se tornarem mestres.
A lição para o futuro
Mercado Livre e Havanna não venceram o Brasil com poder, mas com presença e paciência. Elas cresceram devagar, mas consistentemente, entendendo o que funciona aqui, construindo confiança e se tornando parte do cotidiano. São exemplos de como a invisibilidade da origem pode ser uma força, quando bem conduzida.
Se empresas de outras partes do mundo quiserem realmente fazer parte do Brasil, precisarão aprender com essas irmãs argentinas — e, por que não, com os jesuítas do passado: não basta estar presente — é preciso pertencer.
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