Imagine um Natal gelado em Cracóvia. O luar reflete na neve acumulada no parapeito da janela, e, dentro de casa, o aquecedor crepita como se fosse uma fogueira de São João. Meus filhos poloneses — fruto de uma longa história que une o sangue brasileiro à memória católica da Europa central — decidem reinventar a tradição natalina.
Não bastava trocar presentes. Eles queriam algo mais intelectual, mais picante, mais realista. Foi então que anunciaram, com o brilho infantil nos olhos de quem já nasceu desconfiado do poder político:
“Vamos brincar de amigo secreto. Mas ao invés de presentes, vamos dar apelidos. Estilo Lista da Odebrecht. Só que à moda polonesa.”
A princípio, temi que tivessem visto vídeos demais sobre escândalos brasileiros. Mas logo percebi: era a imaginação moral católica operando, numa tentativa de redimir a cultura da corrupção pela sátira. Meus filhos não brincavam com o mal — desmascaravam-no.
Como tudo começou: do Brasil à Polônia, uma tradição de apelidos
No Brasil, a lista da Odebrecht ficou famosa não apenas pelos crimes, mas pelos apelidos. Havia o "Avião", o "Amigo do amigo do meu pai", o "Boca Mole", o "Santo" e tantos outros — cognomes que tornavam a realidade mais suportável e, paradoxalmente, mais visível. Quando nomeamos, dominamos. Quando ironizamos, arrancamos a máscara.
Na Polônia, onde a história é forjada por resistências — contra russos, alemães, comunistas e agora eurocratas —, os apelidos também têm função política. Basta pensar nos tempos da censura comunista, quando as piadas se tornaram forma de sobrevivência cultural.
Assim, meus filhos resolveram fundir as duas tradições. Cada um sorteou um nome e preparou um “presente”: um apelido cifrado, cheio de ironia, crítica social e imaginação histórica. Nascia ali a Lista da “Obrechtw” — uma piada entre “Odebrecht” e um nome qualquer da nobreza polonesa, como Potocki ou Sapieha.
Os apelidos da nova lista: um desfile de disfarces e verdades
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Samolot ("Avião")
Mulher que voa de um think tank a outro, patrocinada por ONGs que querem “modernizar a fé”. Elegante, sempre em congresso, ninguém sabe exatamente quem paga suas passagens. -
Kumoter ("Apadrinhado")
Entrou no serviço público aos 19 anos por “mérito familiar”. Dizem que o tio é ministro, mas ele garante que foi “por concurso”. -
Miękki Język ("Boca Mole")
Conta tudo no jantar, principalmente depois da terceira taça de Kompot. Já quase derrubou um partido por acidente. -
Proboszcz na Emigracji ("Santo de Casa")
Pároco expatriado, vive dizendo que é “muito espiritual para se envolver com política”. Mas sempre aparece nas fotos de bastidores da UE em Bruxelas. -
Bez Kolejki ("Fura-fila")
Sempre “conhece alguém”. Pula etapas no consulado, na universidade e até na fila da comunhão. -
Szopka ("Presépio")
Artista que usa símbolos católicos para vender ideologias estrangeiras com cara de piedade local. Ganhou uma bolsa de estudos com performance sobre “Maria como transgressora de gênero”. -
Ojcowizna ("Herança do pai")
Recebeu o cargo, o carro oficial e o discurso do pai. Nunca abriu um livro, mas cita São João Paulo II de cor — em polonês arcaico. -
Przyjaciel Ojca ("Amigo do Pai")
Político “conservador” que apareceu do nada, mas que jura que almoçava com o meu avô. Um verdadeiro fantasma social.
A revelação dos amigos secretos
Chegada a hora da revelação, cada criança entregou um envelope. Não com um presente, mas com uma descrição cifrada:
“Você é o Samolot porque, apesar de não trabalhar, vive no ar, sustentada por promessas que ninguém entende.”
“Você é o Kumoter porque sua biografia cabe num carimbo: carisma herdado, talento presumido, utilidade nenhuma.”
Ninguém ficou ofendido. Pelo contrário: riram, refletiram, perguntaram. E o que mais me surpreendeu: citaram nomes reais. Não era apenas uma brincadeira. Era uma análise política enraizada na imaginação.
Humor como ato moral
Essa brincadeira diz muito sobre a maneira como o espírito cristão — quando bem formado — transforma até a cultura da corrupção em ocasião de verdade. Meus filhos poloneses, na inocência ousada dos pequenos santos, compreendem o que tantos adultos esqueceram: que nomear o mal, ridicularizá-lo e expô-lo é um ato de resistência.
Mais do que um jogo, o amigo secreto da Obrechtw virou um símbolo: o de que é possível crescer entre as ruínas, rir no meio da tempestade e ensinar, com amor, que o mal — quando nomeado — perde força.
Epílogo: para quem ainda crê na infância como profecia
Se um dia o Brasil quiser recomeçar, talvez deva olhar para seus filhos — ou para os filhos que ainda estão por vir, nascidos na diáspora, misturando línguas, santos e ironias. Talvez devamos ensinar às novas gerações não apenas a amar a verdade, mas a rirem dela como quem ri do dragão que já perdeu sua guerra.
Afinal, como disse Chesterton, “o demônio é um ser que não sabe rir”. Mas meus filhos poloneses sabem — e isso é esperança.
A vaca do presépio e sua encarnação satírica
Na versão dos meus filhos, a “vaca do presépio” já não é apenas um animal silencioso que observa o Menino Jesus. Agora ela se tornou um símbolo nacional-político: uma massa social que aceita tudo, financia tudo e ainda aplaude o anjo corrupto.
— É a vaca sagrada do novo progressismo: mugindo em sete idiomas, com mestrado em compliance e doutorado em transformação ecológica — explicou meu filho mais velho enquanto modelava a figura com massinha.
A nova vaca tem nome: Dotação, ou seja, “recursos públicos” em polonês. Ela não diz “muuu”, ela diz “UE” (União Europeia) e cospe notas de euro pelas narinas.
Presépio completo: figuras em miniatura de Obrechtów
O projeto artístico se desenvolveu com um toque de crítica refinada:
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O Menino Jesus foi substituído por um cheque em branco com a inscrição: Para os fins da justiça social.
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Maria aparece vestindo uma camiseta dos Direitos Humanos com os dizeres: Deus é Mãe.
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José segura um contrato público, olhando para o lado, fingindo que não sabia de nada.
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Os pastores foram substituídos por gestores de fundos europeus, carregando malas da Comissão Europeia.
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Os Três Reis Magos vieram de helicóptero, trazendo “ouro”, “mirra” e “criptomoedas”.
E ao lado deles – ela: a Vaca do Presépio. Silenciosa, com os olhos arregalados, um código QR no flanco: Apoie a cultura. Apoie a arte livre.
Brasil e Polônia – a irmandade da zombaria
Esse presépio natalino tornou-se algo mais do que uma simples sátira: um símbolo de como duas nações marcadas pela fé católica e pela corrupção institucional se reconhecem mutuamente em seus vícios e virtudes.
A cultura da “vaquinha” brasileira, tão popular nos projetos de “resistência democrática”, encontra sua paródia em solo polonês, onde tudo é mais cerimonial — mas o absurdo é o mesmo.
Conclusão: Quando a vaca mugir, a justiça renascerá
Rir de tudo isso é — paradoxalmente — um ato de fé. Pois só ri aquele que ainda acredita que algo pode mudar. A vaca do presépio pode, enfim, deixar de ser símbolo da passividade e tornar-se estandarte de acusação.
Porque, se os pastores se venderam e os reis foram corrompidos — que pelo menos a vaca fale. E diga a verdade.
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