A vida e a obra de Santo Agostinho constituem uma verdadeira ponte entre dois mundos: o antigo, em sua decadência, e o medieval, ainda por florescer. Com mais de duzentas obras escritas em uma época de profundas transformações, Agostinho se tornou um dos pilares fundamentais da civilização cristã que emergiria após o colapso do Império Romano.
A Ruína de Roma e o Nascimento de uma Nova Civilização
Quando Roma foi saqueada pelos visigodos em 410, Santo Agostinho tinha 45 anos. Vinte anos depois, ao entregar sua alma a Deus em 430, sua cidade, Hipona, estava sitiada pelos vândalos. Ele viveu no auge da desagregação da ordem romana, testemunhando a ruína de um esforço civilizacional milenar.
Diante dessa catástrofe, muitos pagãos atribuíram a culpa à crescente influência do cristianismo e ao abandono dos antigos deuses. Em resposta, Santo Agostinho escreveu sua obra-prima: A Cidade de Deus, uma monumental coleção de 22 livros que seria a base para a visão cristã da história e da política nos séculos seguintes.
A Cidade de Deus: Refutação, Construção e Visão Histórica
Dividida em duas partes, a primeira seção da obra refuta as acusações contra o cristianismo, demonstrando que Roma já havia perdido sua virtude antes da conversão ao Evangelho. A segunda parte, a mais influente, apresenta a cosmovisão cristã da história, formulando uma teoria do Estado, da justiça e das relações entre os poderes espiritual e temporal.
Agostinho mostra que toda a história humana é orientada ao triunfo final de Cristo, e que a verdadeira felicidade — objetivo último de todo ser humano — só pode ser alcançada pela ordenação correta do amor e pela busca de Deus.
Duas Cidades, Dois Amores
A principal chave interpretativa de Santo Agostinho para compreender a história e a vida social é a divisão da humanidade entre dois amores, que dão origem a duas cidades simbólicas: Babilônia, fundada no amor de si até o desprezo de Deus, e Jerusalém, no amor de Deus até o desprezo de si.
Os membros dessas duas cidades estão fisicamente misturados no mundo, mas moralmente separados pela orientação de seus corações. Como explicou o Padre Henri Ramier, essa distinção é profundamente filosófica: o valor moral do homem depende da boa ordenação do seu amor, que é acessível a todos.
Ordem, Felicidade e Graça
Segundo Agostinho, a verdadeira ordem — a justa disposição das coisas em relação ao seu fim — é o caminho para a felicidade. O fim último do homem é conhecer e possuir Deus. A graça divina é indispensável para essa jornada: sem ela, não é possível crer plenamente nas verdades reveladas nem viver os mandamentos de forma estável.
Essa graça transforma o homem inteiro e deve guiar não apenas sua vida pessoal, mas também a vida pública, as instituições e os estados. Um pai de família convertido pertence à Igreja também como chefe de seu lar. O mesmo se aplica ao príncipe ou ao rei.
Contra o Estado Laico
A ideia de um Estado laico seria impensável para o espírito medieval impregnado pelo pensamento agostiniano. Os reinos da Cristandade eram confessionais. Se, por um lado, a Igreja reconhecia que o poder dos reis vinha de Deus, por outro, refreava suas ambições, impondo limites ao poder civil.
Essa aliança entre altar e trono foi tão eficaz que os revolucionários do século XVIII entenderam que, para atingir o altar, era necessário antes derrubar os tronos.
A Teologia da História
Talvez a maior contribuição de Santo Agostinho tenha sido a fundação da teologia da história. Embora outros Padres da Igreja tenham escrito sobre história, foi Agostinho quem lhe deu sentido teológico profundo. A Cidade de Deus inspirou autores posteriores como Bossuet, Ramier e Monsenhor Delassus, e se tornou a fonte da cosmovisão cristã sobre o tempo e os eventos.
Agostinho remonta a origem das duas cidades ao mundo angelical: a rebelião de Lúcifer fundou a sociedade do ódio, enquanto os anjos fiéis permaneceram na sociedade do amor. Na Terra, Caim fundou a cidade dos homens e Sete representou a cidade de Deus. Essa tensão atravessa toda a história humana.
Da Queda de Roma ao Império de Carlos Magno
Embora Santo Agostinho não tenha vivido para ver a queda definitiva de Roma em 476, sua visão triunfou. Enquanto os líderes civis abandonavam seus postos, os bispos assumiram a tarefa de carregar a civilização. Posteriormente, os monges cristianizaram os povos bárbaros, estabelecendo as fundações da Cristandade Medieval.
Um dos maiores admiradores da obra de Agostinho foi Carlos Magno. A Cidade de Deus era uma das leituras preferidas do imperador, que pedia aos sábios que a lessem para ele. Inspirado por essa obra, Carlos Magno promoveu uma ordem política e espiritual profundamente cristã.
A Era Cristã e a Influência Duradoura de Santo Agostinho
Os séculos XI a XIII consolidaram a Cristandade como a ordem dominante do mundo ocidental. Catedrais, universidades, cruzadas, obras filosóficas e teológicas, tudo isso foi fruto de uma civilização moldada por Agostinho. Como afirmou o Papa Leão XIII, houve um tempo em que “a filosofia do Evangelho governava os estados”. Essa era teve em Santo Agostinho um de seus principais arquitetos espirituais e intelectuais.
Conclusão
Santo Agostinho não foi apenas um grande bispo ou teólogo. Como disse Altaner, ele reuniu em si a criatividade de Tertuliano, a inteligência de Orígenes, o amor de São Cipriano, o rigor lógico de Aristóteles e o idealismo de Platão. É o maior filósofo da era patrística e, possivelmente, o mais influente teólogo de toda a Igreja.
Conhecer a sua obra é conhecer as raízes da Cristandade. Por isso, estudar a Cidade de Deus e o pensamento de Agostinho é mais do que uma tarefa acadêmica — é uma necessidade para quem deseja compreender o legado espiritual e intelectual do Ocidente cristão.
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