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quinta-feira, 8 de maio de 2025

A rejeição da Lei da Ficha Limpa na Argentina e a experiência brasileira como alerta

A Lei da Ficha Limpa, aprovada no Brasil em 2010, foi inicialmente celebrada como um avanço no combate à corrupção. Fruto de uma mobilização popular inédita — com mais de 1,6 milhão de assinaturas — a lei proibia a candidatura de políticos condenados por órgão colegiado da Justiça, mesmo que ainda houvesse recursos pendentes. Seu objetivo era claro: moralizar a política e impedir que figuras públicas com histórico judicial suspeito ocupassem cargos eletivos.

Contudo, a experiência brasileira mostrou que, embora bem-intencionada, a lei foi gradualmente sendo usada como instrumento de disputa política. Em particular, críticas se intensificaram ao longo dos anos quando se percebeu que a aplicação da lei recaía de forma desproporcional sobre figuras de direita ou conservadoras, enquanto políticos ligados à esquerda, ainda que enfrentando acusações semelhantes ou até mais graves, eram poupados ou enfrentavam julgamentos mais lentos e flexíveis. Essa disparidade gerou uma crescente desconfiança quanto à imparcialidade da Justiça Eleitoral brasileira e à neutralidade das instituições envolvidas.

Foi justamente esse exemplo que acendeu o sinal de alerta na Argentina. Quando, em 2023 e 2024, surgiram propostas para implementar uma versão argentina da Lei da Ficha Limpa, o Congresso e parte significativa da opinião pública rejeitaram a ideia. A justificativa principal não foi uma defesa de corruptos ou uma oposição à ética na política, mas sim uma preocupação com os potenciais abusos que tal legislação poderia permitir. Em outras palavras: a Argentina observou como a judicialização da política no Brasil abriu margem para perseguições seletivas e decidiu evitar o mesmo caminho.

O princípio da presunção de inocência em jogo

Na base da rejeição argentina está um princípio jurídico fundamental: a presunção de inocência. A proposta brasileira, ao tornar inelegíveis candidatos condenados antes do trânsito em julgado, rompe com a tradição garantista do Direito Penal e Eleitoral, que exige uma condenação definitiva antes da imposição de sanções graves. No Brasil, esse princípio foi relativizado sob o argumento do "interesse público", mas a experiência demonstrou que o risco de manipulação judicial tornou-se real e frequente.

Assim, a Argentina optou por preservar esse princípio como um escudo contra eventuais arbitrariedades, reconhecendo que o sistema judicial também está sujeito a pressões políticas e ideológicas. Ao manter a exigência de condenação definitiva para tornar alguém inelegível, os legisladores argentinos enviaram uma mensagem clara: o combate à corrupção não pode ser feito à custa do Estado de Direito.

O risco da moralidade seletiva

A moralidade pública é um valor inegociável em qualquer democracia. No entanto, quando a moralidade passa a ser seletiva — aplicada com rigor a um grupo e com indulgência a outro — ela deixa de ser um pilar ético e passa a ser um instrumento de poder. Esse foi, segundo muitos analistas, o maior erro da aplicação da Lei da Ficha Limpa no Brasil. A politização de órgãos de controle e da Justiça Eleitoral, associada a um ativismo judicial que se tornou recorrente na última década, minou a confiança da população nas instituições e gerou uma nova forma de instabilidade política.

Ao rejeitar sua própria versão da Ficha Limpa, a Argentina fez uma escolha conservadora no sentido mais nobre da palavra: conservou princípios constitucionais básicos em vez de ceder à tentação de soluções rápidas para problemas complexos.

Conclusão

O caso argentino revela uma importante lição para as democracias latino-americanas: a luta contra a corrupção não pode ser travada à custa dos direitos fundamentais. A experiência brasileira mostrou que, sem salvaguardas institucionais robustas e um Judiciário verdadeiramente imparcial, leis como a Ficha Limpa podem se transformar em instrumentos de guerra política. A rejeição argentina não deve ser lida como complacência com o crime, mas como um ato de prudência diante dos riscos reais de judicialização seletiva da política. Em tempos de polarização e crise institucional, manter as garantias constitucionais é, talvez, a forma mais sólida de proteger a democracia.

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