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quinta-feira, 22 de maio de 2025

“Arresto”, “Arrest” e “Arrestar”: um estudo comparado das categorias linguísticas e jurídicas no Português, Inglês e Espanhol

 Introdução

O Direito não é apenas um conjunto de normas, mas uma linguagem que organiza a experiência social segundo categorias específicas. As palavras não apenas comunicam conceitos jurídicos, mas também os moldam, delimitando o modo como cada sociedade compreende os fenômenos de poder, sanção, propriedade e liberdade. Dentro desse contexto, o termo “arresto”, tal como é empregado no português, no inglês (“arrest”) e no espanhol (“arrestar”), oferece uma oportunidade privilegiada para refletir sobre as intersecções entre linguagem, cultura e direito.

Este artigo busca analisar as diferenças semânticas e jurídicas do termo, contrastando como o conceito de arresto se articula nas tradições jurídicas de matriz romano-germânica e common law, bem como nas tradições linguísticas ibéricas e anglo-saxãs.

1. O Arresto no Direito Processual Civil Lusófono

No direito brasileiro e português, o “arresto” é uma medida típica do processo civil de execução, mais precisamente uma medida cautelar (ou de natureza assecuratória no processo executivo). Trata-se da apreensão judicial de bens do devedor, móveis, imóveis ou semoventes, visando garantir a eficácia de uma execução por quantia certa. A finalidade é assegurar que, ao final do processo, haja patrimônio suficiente para satisfazer a obrigação.

O arresto, portanto, é sempre uma constrição patrimonial e nunca pessoal. No âmbito do direito lusófono, é inconcebível falar em arresto de pessoas. Quando a liberdade de alguém é cerceada por decisão judicial, emprega-se o termo prisão, que se subdivide em prisão penal, prisão civil (excepcional, como no caso de devedor de alimentos) e prisões de natureza cautelar no processo penal (prisão preventiva, temporária, flagrante, etc.).

► A chave conceitual: no português, arresto = coisa (bem); prisão = pessoa.

2. “Arrest” no Direito Anglo-Saxão: A Coisificação Provisória da Pessoa

No inglês jurídico, especialmente no âmbito penal, o termo “arrest” refere-se diretamente à privação da liberdade de uma pessoa suspeita da prática de um crime. A fórmula consagrada — “You are under arrest” — significa literalmente que alguém está sob arresto, ou seja, sob custódia legal, privado de sua liberdade de locomoção.

Aqui emerge uma nuance interessantíssima: no ato do arrest, o sujeito é, em certo sentido, reduzido a um objeto processual, uma coisa (res) sobre a qual incide a autoridade do Estado, até que se decida, no devido processo legal, sua responsabilidade penal.

O arresto penal, portanto, no direito anglo-saxão, reproduz o mesmo princípio que fundamenta o arresto civil nos ordenamentos lusófonos: retirar algo — bem ou pessoa — do estado de livre circulação no mundo social, submetendo-o à autoridade do juízo.

Se no português a operação de arresto recai sobre bens, no inglês ela recai tipicamente sobre pessoas no âmbito penal.

► A chave conceitual: no inglês, arrest = privação da liberdade (pessoa).

Curiosamente, embora o inglês jurídico também possua medidas de constrição patrimonial, não é comum que o verbo “to arrest” se aplique a bens no direito civil moderno, exceto em contextos muito específicos do direito marítimo, onde a expressão “ship arrest” refere-se à apreensão de uma embarcação para garantir créditos marítimos.

3. “Arrestar” no Espanhol: Elasticidade Semântica

Na língua espanhola, o verbo “arrestar” aproxima-se muito mais do inglês do que do português no uso coloquial e jurídico. Emprega-se para designar prisão penal, especialmente no momento da captura:

  • “Está arrestado.” = “You are under arrest.” = “Está preso.”

Entretanto, o espanhol jurídico, por herança do direito romano e da tradição continental, também mantém o uso do termo “arresto” no âmbito civil, para designar medidas cautelares sobre bens:

  • “Arresto preventivo de bienes” = equivalente ao arresto cível português.

O espanhol, portanto, apresenta uma elasticidade semântica ausente no português. O mesmo verbo — arrestar — pode se referir tanto à privação de liberdade de uma pessoa no âmbito penal quanto à constrição patrimonial no processo civil.

► A chave conceitual: no espanhol, arresto pode = coisa (bem) ou pessoa (prisão), dependendo do contexto.

4. Raízes Etimológicas e Filosóficas do Instituto

A palavra arresto provém do latim vulgar arrestare, derivado do latim clássico arrestare ou arrestum, que significa literalmente “parar, deter”, formado por “ad” (a, para) + “restare” (ficar, parar). O sentido original era simplesmente interromper o movimento, aplicar uma força que impede a livre circulação — seja de coisas, seja de pessoas.

Portanto, no núcleo do conceito está a ideia de interrupção do estado de livre disposição no mundo social:

  • No civil: o bem deixa de circular livremente, sendo subtraído ao comércio ou uso do devedor.

  • No penal: a pessoa perde temporariamente sua liberdade física, sendo submetida ao controle do Estado.

Este núcleo conceitual se ramifica de maneira diversa conforme o desenvolvimento dos ordenamentos jurídicos, as tradições linguísticas e os pressupostos filosófico-culturais de cada povo.

5. Implicações Culturais e Filosóficas

O fato de o inglês e o espanhol permitirem o uso do termo arresto diretamente sobre pessoas revela uma visão pragmática e direta da atuação do poder estatal sobre os corpos. Já o português, herdeiro de uma tradição jurídico-linguística mais formalizada e mais rigorosa nas distinções conceituais, restringe o arresto ao plano patrimonial.

Essa diferença linguística não é trivial: ela reflete uma diferença na maneira como se percebe a relação entre sujeito, coisa e Estado. Na common law, a função do arresto penal é quase um espelhamento direto do arresto civil — ambos consistem na subtração de algo ao seu estado natural de liberdade, colocando-o sob a autoridade da lei.

Na tradição lusófona, há um esforço semântico consciente para distinguir os atos de coação patrimonial (arresto) dos atos de coação pessoal (prisão), revelando uma preocupação mais acentuada com a separação ontológica entre pessoa e coisa no âmbito jurídico.

Conclusão

A análise comparada dos termos “arresto”, “arrest” e “arrestar” evidencia que a linguagem jurídica não é apenas reflexo da técnica, mas expressão de formas de pensamento jurídico profundamente enraizadas em tradições culturais e filosóficas diversas.

Essa reflexão transcende a mera curiosidade linguística e toca nas próprias bases do direito comparado, mostrando como conceitos aparentemente semelhantes carregam, em diferentes línguas, nuances que moldam as práticas jurídicas e os modos de entender a justiça, a propriedade e a liberdade.

Referências Bibliográficas

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