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sábado, 4 de outubro de 2025

A solenidade da doação e a crítica a Maquiavel

Nicolau Maquiavel, em sua análise da natureza humana, afirmou que os homens em geral se ofendem mais com pequenas ofensas do que com grandes. As grandes, dizia ele, são vistas como inevitáveis, quase fruto do destino; já as pequenas parecem pessoais e evitáveis, por isso ferem mais fundo.

Essa observação, contudo, não se sustenta em todos os casos. Há ofensas que, embora não envolvam violência física ou perdas materiais imensas, atingem diretamente o que há de mais sagrado em uma pessoa: a memória, a honra, a sucessão de significados transmitidos de geração em geração. É nesse ponto que a experiência pessoal se coloca como uma crítica necessária ao pensamento maquiaveliano.

Quando objetos que carregam valor profundo — brinquedos de infância, o livro de cuidados usado por uma mãe, ou mesmo uma Bíblia herdada de um avô — são doados de forma irrefletida a pessoas incapazes de honrar o presente recebido, o que está em jogo não é a utilidade do item, mas a sua sacralidade. O destino desses bens, quando desprezados ou até lançados ao lixo, não representa apenas a perda de algo material; simboliza uma ruptura na cadeia de sentido que une pais, filhos e netos em Cristo.

Essa ruptura não é uma "pequena ofensa". Ela é uma grande indignidade. É uma profanação do sagrado. E justamente porque atinge o fundamento espiritual da vida familiar, é algo capaz de gerar revolta muito mais profunda do que uma injúria corriqueira.

Doar, portanto, não é um gesto neutro ou meramente prático. Não basta que um objeto já não sirva mais a quem o possui para que seja entregue de qualquer modo a outro. A verdadeira doação exige solenidade, consciência e compromisso moral. Quem recebe deve comprometer-se a usar o bem nos méritos de Cristo e, quando este já não lhe for útil, transmiti-lo adiante com a mesma reverência, como se fosse um testemunho da vida.

Essa noção funda-se em algo que a modernidade esqueceu: os objetos carregam significados espirituais. São heranças de amor, sacrifício e memória. Reduzi-los ao plano da utilidade é trair o espírito de quem os transmitiu.

Dessa forma, a correção a Maquiavel é clara: os homens não se indignam apenas com pequenas ofensas. Eles podem se indignar, e justamente, com as grandes ofensas que atentam contra aquilo que há de mais sagrado: a continuidade da vida e da fé através da memória e da sucessão de bens impregnados de sentido.

Negligenciar isso é condenar não apenas a posse material, mas a própria alma — porque quem trata com leviandade o que recebeu dos seus pais e avós, tratando como lixo o que foi um dom, comete um pecado contra a honra, e a honra, no horizonte cristão, não é acessória: é via de salvação ou perdição.

Assim, mais do que um gesto social, a doação deve ser entendida como um ato de tradição, no sentido pleno do termo: transmissão fiel, nos méritos de Cristo, daquilo que recebemos e que nos cabe passar adiante.

Bibliografia

  • MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

  • SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 101-103 (tratado da religião e da piedade). Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001.

  • BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007.

  • LEÃO XIII. Encíclica Rerum Novarum (1891). Vaticano.

  • PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais. São Paulo: Loyola, 2003.

  • GUÉRANGER, Dom Próspero. O Ano Litúrgico. São Paulo: Permanência, 2005.

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