1. O princípio da replicação institucional
María Elvira Roca Barea observa que, ao expandir-se, a Monarquia Hispânica replicava as instituições de Castela nos novos territórios, sem instituir um ordenamento colonial distinto. Todos eram súditos do mesmo rei, fossem peninsulares, índios ou mestiços. A noção de “colônia” como espaço jurídico subordinado à metrópole, típica do modelo britânico, não se aplicava ao universo hispânico.
Essa lógica também se aplicava a Portugal: a expansão ultramarina não criou uma ordem jurídica paralela, mas transplantou o município, o direito régio e o catolicismo como eixos organizadores. A América portuguesa não era concebida como “colônia” no sentido moderno, mas como parte integrante do Reino — daí a expressão “portugueses de além-mar”.
2. O Brasil como extensão do Reino de Portugal
No Brasil, desde a fundação das primeiras capitanias e vilas, foram instituídos cabildos lusitanos (as câmaras municipais), irmandades religiosas e universidades jesuíticas, à semelhança do que já existia no reino europeu. Essa replicação garantiu continuidade cultural e jurídica, formando uma população que se via portuguesa, ainda que em terras americanas.
A expressão “portugueses de além-mar” reforça o caráter de unidade política e cultural: a nação portuguesa não era definida apenas pelo território europeu, mas pela fidelidade ao rei e pela comunhão espiritual sob a Igreja Católica.
3. A transferência da Corte (1808) e o Brasil como centro do Império
Esse princípio de unidade atingiu sua expressão máxima com a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, fugindo das tropas napoleônicas. Pela primeira vez na história moderna, a cabeça do Reino deslocava-se para uma de suas partes ultramarinas. O que era “Portugal de além-mar” tornou-se, literalmente, Portugal central.
Entre as medidas de D. João VI, destacam-se:
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Abertura dos portos às nações amigas (1808): o Brasil deixa de depender exclusivamente do comércio metropolitano.
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Criação de instituições régias no Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, Biblioteca Real, Tribunais Supremos.
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Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815): a consagração jurídica da ideia de que o Brasil não era mais “colônia”, mas parte essencial do Império.
Esse movimento confirmou que, desde o início, o Brasil era parte orgânica da monarquia portuguesa. Ao contrário das colônias britânicas da América do Norte, que se rebelaram contra a metrópole, o Brasil recebeu a metrópole em si — e, assim, herdou sua estrutura política completa.
4. Diferença em relação ao modelo britânico
O contraste é evidente:
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Modelo ibérico: integração institucional, replicação de leis e reconhecimento dos súditos além-mar como membros do Reino.
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Modelo britânico: separação jurídica, distinção rígida entre colonos e nativos, cidadania restrita.
Enquanto um indiano jamais poderia portar passaporte britânico, um luso-brasileiro era reconhecido como português. A independência de 1822 não foi uma ruptura total, mas a apropriação, em terras americanas, da mesma máquina de Estado que já funcionava em Lisboa.
5. Quadro comparativo dos modelos coloniais
| Aspecto | Modelo Ibérico (Espanha/Portugal) | Modelo Britânico | Modelo Francês |
|---|---|---|---|
| Status jurídico | Territórios integrados ao Reino; súditos do mesmo monarca | Colônias juridicamente separadas; cidadania restrita | Regime misto: colônias como prolongamento cultural, mas sem plena cidadania |
| Instituições | Replicação de municípios, universidades, câmaras, irmandades | Charter colonies, companhias privadas, autogoverno limitado | Administração centralizada em Paris; códigos coloniais |
| Cidadania | Inclusão formal (mesmo que desigual na prática) | Exclusão dos nativos; distinção rígida | Inclusão limitada; Código Napoleônico adaptado |
| Identidade | “Portugueses/Espanhóis de além-mar” | Colono = britânico; nativo ≠ britânico | Sujeitos franceses de segunda ordem |
| Legado | Unidades nacionais integradas (Brasil, Hispano-américa) | Comunidades da Commonwealth | Diversidade linguística e tensões pós-coloniais |
6. Consequências históricas
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Unidade linguística: Portugal assegurou o predomínio do português no Brasil.
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Cultura política: O municipalismo e o direito régio moldaram a vida brasileira.
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Centralidade atlântica: A instalação da Corte no Rio de Janeiro transformou o Brasil em cabeça do Império.
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Independência peculiar: Quando rompeu com Portugal, o Brasil já possuía Estado, burocracia e identidade próprios — herança direta do Reino.
7. Conclusão
A leitura de Roca Barea ajuda a compreender que a colonização ibérica não foi simplesmente uma relação de exploração econômica. Foi também um projeto de replicação civilizacional, em que Portugal e Espanha expandiram seus mundos jurídicos, culturais e religiosos. O Brasil herdou de Portugal não só instituições, mas o próprio estatuto de parte essencial do Reino.
A transferência da Corte em 1808 confirmou essa lógica: o Brasil não era periferia, mas um Portugal de além-mar tornado centro do Império. Essa singularidade explica tanto a unidade nacional brasileira após a Independência quanto a continuidade institucional que diferencia sua trajetória da maioria das ex-colônias modernas.
Bibliografia
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ROCA BAREA, María Elvira. Imperiofobia y leyenda negra. Madrid: Siruela, 2016.
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VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 3 vols. São Paulo: Melhoramentos, 1948.
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