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domingo, 26 de outubro de 2025

A expansão hispânica e a herança portuguesa no Brasil: integração, replicação e identidade além-mar

1. O princípio da replicação institucional

María Elvira Roca Barea observa que, ao expandir-se, a Monarquia Hispânica replicava as instituições de Castela nos novos territórios, sem instituir um ordenamento colonial distinto. Todos eram súditos do mesmo rei, fossem peninsulares, índios ou mestiços. A noção de “colônia” como espaço jurídico subordinado à metrópole, típica do modelo britânico, não se aplicava ao universo hispânico.

Essa lógica também se aplicava a Portugal: a expansão ultramarina não criou uma ordem jurídica paralela, mas transplantou o município, o direito régio e o catolicismo como eixos organizadores. A América portuguesa não era concebida como “colônia” no sentido moderno, mas como parte integrante do Reino — daí a expressão “portugueses de além-mar”.

2. O Brasil como extensão do Reino de Portugal

No Brasil, desde a fundação das primeiras capitanias e vilas, foram instituídos cabildos lusitanos (as câmaras municipais), irmandades religiosas e universidades jesuíticas, à semelhança do que já existia no reino europeu. Essa replicação garantiu continuidade cultural e jurídica, formando uma população que se via portuguesa, ainda que em terras americanas.

A expressão “portugueses de além-mar” reforça o caráter de unidade política e cultural: a nação portuguesa não era definida apenas pelo território europeu, mas pela fidelidade ao rei e pela comunhão espiritual sob a Igreja Católica.

3. A transferência da Corte (1808) e o Brasil como centro do Império

Esse princípio de unidade atingiu sua expressão máxima com a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, fugindo das tropas napoleônicas. Pela primeira vez na história moderna, a cabeça do Reino deslocava-se para uma de suas partes ultramarinas. O que era “Portugal de além-mar” tornou-se, literalmente, Portugal central.

Entre as medidas de D. João VI, destacam-se:

  • Abertura dos portos às nações amigas (1808): o Brasil deixa de depender exclusivamente do comércio metropolitano.

  • Criação de instituições régias no Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, Biblioteca Real, Tribunais Supremos.

  • Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815): a consagração jurídica da ideia de que o Brasil não era mais “colônia”, mas parte essencial do Império.

Esse movimento confirmou que, desde o início, o Brasil era parte orgânica da monarquia portuguesa. Ao contrário das colônias britânicas da América do Norte, que se rebelaram contra a metrópole, o Brasil recebeu a metrópole em si — e, assim, herdou sua estrutura política completa.

4. Diferença em relação ao modelo britânico

O contraste é evidente:

  • Modelo ibérico: integração institucional, replicação de leis e reconhecimento dos súditos além-mar como membros do Reino.

  • Modelo britânico: separação jurídica, distinção rígida entre colonos e nativos, cidadania restrita.

Enquanto um indiano jamais poderia portar passaporte britânico, um luso-brasileiro era reconhecido como português. A independência de 1822 não foi uma ruptura total, mas a apropriação, em terras americanas, da mesma máquina de Estado que já funcionava em Lisboa.

5. Quadro comparativo dos modelos coloniais 

Aspecto Modelo Ibérico (Espanha/Portugal) Modelo Britânico Modelo Francês
Status jurídico Territórios integrados ao Reino; súditos do mesmo monarca Colônias juridicamente separadas; cidadania restrita Regime misto: colônias como prolongamento cultural, mas sem plena cidadania
Instituições Replicação de municípios, universidades, câmaras, irmandades Charter colonies, companhias privadas, autogoverno limitado Administração centralizada em Paris; códigos coloniais
Cidadania Inclusão formal (mesmo que desigual na prática) Exclusão dos nativos; distinção rígida Inclusão limitada; Código Napoleônico adaptado
Identidade “Portugueses/Espanhóis de além-mar” Colono = britânico; nativo ≠ britânico Sujeitos franceses de segunda ordem
Legado Unidades nacionais integradas (Brasil, Hispano-américa) Comunidades da Commonwealth Diversidade linguística e tensões pós-coloniais

6. Consequências históricas

  • Unidade linguística: Portugal assegurou o predomínio do português no Brasil.

  • Cultura política: O municipalismo e o direito régio moldaram a vida brasileira.

  • Centralidade atlântica: A instalação da Corte no Rio de Janeiro transformou o Brasil em cabeça do Império.

  • Independência peculiar: Quando rompeu com Portugal, o Brasil já possuía Estado, burocracia e identidade próprios — herança direta do Reino.

7. Conclusão

A leitura de Roca Barea ajuda a compreender que a colonização ibérica não foi simplesmente uma relação de exploração econômica. Foi também um projeto de replicação civilizacional, em que Portugal e Espanha expandiram seus mundos jurídicos, culturais e religiosos. O Brasil herdou de Portugal não só instituições, mas o próprio estatuto de parte essencial do Reino.

A transferência da Corte em 1808 confirmou essa lógica: o Brasil não era periferia, mas um Portugal de além-mar tornado centro do Império. Essa singularidade explica tanto a unidade nacional brasileira após a Independência quanto a continuidade institucional que diferencia sua trajetória da maioria das ex-colônias modernas.

Bibliografia

  • BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português (1415–1825). Lisboa: Edições 70, 2002.

  • ELLIOTT, John H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America 1492–1830. New Haven: Yale University Press, 2006.

  • HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviatã: Instituições e poder político em Portugal, séc. XVI–XVIII. Coimbra: Almedina, 1994.

  • MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750–1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

  • PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.

  • ROCA BAREA, María Elvira. Imperiofobia y leyenda negra. Madrid: Siruela, 2016.

  • SCHWARTZ, Stuart B. Sovereignty and Society in Colonial Brazil. Berkeley: University of California Press, 1973.

  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 3 vols. São Paulo: Melhoramentos, 1948.

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