“O fim da guerra é a paz.”
— Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XIX, 12
O guerreiro é aquele que faz da guerra a sua profissão. Vive da espada e pelo sangue, e sua economia moral está fundada na conquista, no saque e no butim. Seu lucro nasce da destruição, e sua honra, muitas vezes, é medida pela quantidade de inimigos vencidos. Quando a guerra cessa, e o clangor das armas se silencia, o guerreiro vê-se desprovido de sentido — pois sua subsistência está ligada à continuidade do conflito. Em tempos de paz, torna-se mercenário: vende sua força a quem puder pagar, e o ideal é substituído pelo contrato.
A história da humanidade está repleta desses homens. Dos guerreiros homéricos aos cavaleiros medievais, dos condottieri italianos aos soldados de fortuna das colônias modernas, a guerra sempre produziu uma classe de indivíduos cuja sobrevivência depende do combate. Mas há uma distinção essencial entre aquele que luta por dever e aquele que luta por lucro. O primeiro é movido por uma causa; o segundo, por um interesse. Um serve à pátria; o outro, ao próprio bolso. Um busca a justiça; o outro, a oportunidade.
O mercenário é o guerreiro sem pátria. Ele troca a lealdade pelo pagamento, e a honra pela utilidade. Sua coragem é real, mas sem direção moral. Ele pode lutar em qualquer lado, desde que seja remunerado — e, por isso mesmo, é o símbolo da decadência do espírito guerreiro. O guerreiro, enquanto tipo humano, ainda pode conservar certa nobreza de alma, porque acredita em valores como glória e coragem; já o mercenário é pura função: uma máquina de matar a serviço do poder que melhor o recompense.
Em contraste com esses dois, ergue-se a figura do soldado-cidadão — o homem que compreende a guerra como exceção e a paz como vocação. Ele não busca o conflito, mas o aceita quando necessário, e o faz por amor à ordem, não por ganância. O soldado-cidadão luta por dever e repousa por direito. Sua fidelidade não se compra nem se mede em soldo, pois é expressão de uma lealdade mais alta: a lealdade à verdade, à justiça e à comunidade política de que faz parte.
Cristo, quando censura Pedro por usar a espada, não condena a guerra em si, mas o impulso que dela faz um meio de vida. A espada tem seu lugar, mas deve ser guardada quando o bem comum não exige o seu uso. A guerra, quando justa, é ato de serviço; quando feita por interesse, é ato de idolatria. Por isso, o soldado-cidadão é o contrário do mercenário: ele é um servo da paz, ainda que formado na guerra.
Na sociedade moderna, onde o poder se disfarça de direito e a violência assume formas econômicas e psicológicas, o espírito mercenário se ampliou. Muitos vivem hoje como guerreiros de mercado: combatem por lucro, conquistam por vaidade, saqueiam em nome da eficiência. Tornaram-se mercenários sem espada, mas com alma de guerra. E assim como o guerreiro antigo precisava de batalhas para subsistir, o homem contemporâneo precisa de crises para justificar a própria existência.
O verdadeiro progresso começa quando a força se submete à verdade e o poder se converte em serviço. Só então o guerreiro se transforma em cidadão, e a espada, em símbolo de justiça. A paz não é o contrário da guerra, mas o seu cumprimento. É o estado daquele que venceu a si mesmo e aprendeu a lutar apenas quando a luta é dever, e não profissão.
Bibliografia comentada
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. São Paulo: Paulus, 1990.
A fonte clássica da distinção entre a guerra justa e a guerra movida por concupiscência. Fundamenta a ideia de que a finalidade última da guerra é a paz e que a ordem deve prevalecer sobre o ímpeto.
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Apresenta a noção de que a guerra é um meio subordinado à vida boa (εὐζῆν) e não um fim em si mesma. Fundamenta o contraste entre o guerreiro e o cidadão.
MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Obra essencial para compreender o nascimento do mercenário moderno e a crítica aos exércitos de aluguel, que o autor considera perigosos para o Estado.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
Defende o conceito de cidadão-soldado e a subordinação do poder militar ao corpo político — noção fundamental para a figura do soldado-cidadão.
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
A lealdade como base da vida moral e cívica. Oferece a chave ética para distinguir o serviço desinteressado do mercenarismo e a obediência à verdade do simples cumprimento de ordens.
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt, 1920.
Embora centrado no contexto americano, ajuda a compreender o “espírito guerreiro” em sua dimensão expansiva e civilizadora, mas também as tentações do individualismo sem causa.
LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum. Roma, 1891.
Estabelece o princípio da dignidade do trabalho e da justa ordenação do lucro — o contraponto moral à economia de saque que caracteriza o espírito mercenário.
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