1. A morte do devedor como quase-falência
Do ponto de vista econômico e jurídico, a morte do devedor frequentemente interrompe a expectativa de recebimento integral dos credores, pois a responsabilidade fica limitada ao patrimônio deixado. Para os herdeiros, o processo de sucessão pode significar um recomeço doloroso: recebem bens materiais, mas perdem o histórico de crédito, a reputação construída no mercado e as conexões sociais que sustentavam o progresso econômico anterior. É como se o sistema econômico daquela pessoa sofresse uma falência parcial por força maior, obrigando os sucessores a reconstruir sua trajetória praticamente do zero.
2. A herança imaterial na tradição aristocrática
Na época da nobreza, a herança não se limitava a terras e bens materiais. O bom nome familiar era transmitido como capital simbólico de prestígio, confiança e reputação. Esse patrimônio intangível abria portas nas relações sociais e econômicas, permitindo que os herdeiros não apenas mantivessem, mas ampliassem a influência da família ao longo das gerações.
Esse crédito herdado equivalia a um mecanismo de continuidade social: a confiança no mercado, conquistada por um membro, se estendia automaticamente a seus descendentes. A morte não significava ruptura, mas a continuidade da trajetória de confiança, na qual herdeiros representavam seus antecessores e eram julgados tanto pelos méritos próprios quanto pela honra herdada
3. O fundamento moral: honrar pai e mãe
O princípio ético de honrar pai e mãe oferece base moral para a continuidade sucessória:
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Aos olhos de Deus, significa obediência e respeito durante a vida dos pais.
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Aos olhos dos homens, após a morte, implica preservar sua memória, sua reputação e assumir responsabilidades.
Se o herdeiro herda o bom nome, ele o representa diante da sociedade. E, por força dessa representação, também herda a responsabilidade de honrar as dívidas deixadas, de modo proporcional e justo.
Neste sentido, se o herdeiro recebe não apenas os bens, mas também o bom nome de seu pai ou de sua mãe, a ponto de honrá-los até mesmo naquilo que ficou por se pagar, cria-se uma lógica nova de família. A família passa a ser entendida como uma cadeia do ser de bons pagadores, onde cada geração preserva e transmite a reputação de adimplência e confiabilidade.
Essa formulação dialoga diretamente com a análise de Arthur O. Lovejoy em The Great Chain of Being: a família funciona como um elo em uma cadeia contínua, em que cada geração ocupa seu lugar e prolonga a ordem moral e social. Essa prática corresponderia a um novo tipo de nobreza — não fundada em títulos de sangue ou terras herdadas, mas na continuidade moral e econômica do crédito honrado. Surge, assim, um novo tipo de direito de família, em que os vínculos não se limitam a laços patrimoniais ou afetivos, mas também à preservação intergeracional da honra contratual.
4. O problema moderno: o recomeço do zero
No mundo contemporâneo, a herança se restringe ao patrimônio material. Elementos como pontuação de crédito, histórico bancário e relações contratuais de consumo não são transmitidos aos herdeiros. Isso cria um vácuo: os filhos de um bom pagador não herdam sua credibilidade, mas precisam começar como se fossem desconhecidos para o sistema.
Um mecanismo simples poderia resolver esse problema: a herança do score de crédito. Por exemplo, far-se-ia a média aritmética entre a pontuação do falecido e a do herdeiro, resultando em um novo score mais justo. Assim, o herdeiro não enriqueceria sem causa, mas teria condições de dar continuidade à confiança já construída ao longo das gerações da família
5. A herança de contratos e a continuidade dos serviços
Num sistema de relações impessoais, como o do consumo moderno, a morte não deveria extinguir contratos essenciais (energia, telefonia, seguros, programas de fidelidade, milhas aéreas). A sucessão poderia significar a continuidade desses vínculos, preservando a trajetória de consumo da família.
Esse mecanismo representaria uma nova forma de governo representativo da vida econômica:
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o herdeiro representa juridicamente e economicamente o antecessor;
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o mercado reconhece essa representação e garante a continuidade;
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a sucessão deixa de ser apenas patrimonial, tornando-se funcional da cidadania econômica
6. Schopenhauer: vontade e representação na herança
Arthur Schopenhauer, em O Mundo como Vontade e Representação, mostra que a vida se divide em duas dimensões:
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representação, o modo como o mundo aparece aos homens;
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vontade, a essência que move a realidade.
A herança do crédito e da reputação é, no fundo, um elo entre essas duas dimensões:
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como representação, ela dá continuidade visível ao bom nome, ao contrato e ao crédito;
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como vontade, garante a permanência da essência vital da família, que se projeta para além da morte do indivíduo
7. O direito público costumeiro e o Estado-mercado criado a partir da sucessão intergeracional
Oliveira Vianna falava em direito público costumeiro, que nasce da prática social e do direito comum, mais do que da lei formal. O mecanismo sucessório de contratos privados funcionaria justamente assim: uma prática reconhecida socialmente e juridicamente, que se converte em princípio normativo sem necessidade de imposição estatal.
Esse arranjo dá origem a uma forma inédita de Estado, não descrita por Philip Bobbitt: o Estado-mercado sucessório.
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Ele não nasce da vontade estatal, mas da continuidade contratual e da reputação herdada.
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Serviços privados tornam-se equivalentes a serviços públicos em razão da “mão invisível” de Adam Smith: ao prestar um serviço privado, gera-se utilidade pública por arrastamento.
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A reputação e a boa fama tornam-se bens herdáveis, determinando o sucesso dos negócios e a estabilidade da vida econômica intergeracional.
Aqui podemos acrescentar a leitura de Friedrich Hayek: esse Estado-mercado sucessório, construído pela sucessão sistemática entre as gerações ao longo do tempo, é o cerne da ordem espontânea. Não é fruto de planejamento central, mas da evolução gradual de costumes, práticas privadas e confiança social. Trata-se de um exemplo concreto da tese hayekiana: instituições que emergem da experiência histórica e da interação humana, sem desenho prévio, podem garantir maior estabilidade e continuidade do que normas impostas de cima para baixo.
8. Conclusão: o futuro do patrimônio reputacional
Se o Direito reconhece marcas empresariais e propriedade intelectual como bens transmissíveis, também poderia reconhecer o patrimônio reputacional como parte do espólio. A herança do crédito, dos contratos e da reputação social preencheria a lacuna entre sucessão patrimonial e sucessão moral.
Assim, o herdeiro não apenas recebe bens, mas também representa os pais falecidos, preservando sua memória e honrando suas dívidas. Esse sistema uniria a ética religiosa (“honrar pai e mãe”), a filosofia de Schopenhauer (vontade e representação), a economia política de Adam Smith (mão invisível), a teoria da ordem espontânea de Hayek e a visão de Lovejoy sobre a Grande Cadeia do Ser, formando um direito público não-estatal capaz de garantir a continuidade social pela via privada
📖 Bibliografia sugerida
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BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
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VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.
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BOBBITT, Philip. The Shield of Achilles: War, Peace, and the Course of History. New York: Alfred A. Knopf, 2002.
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SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
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HAYEK, Friedrich. Direito, Legislação e Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
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LOVEJOY, Arthur O. The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea. Cambridge: Harvard University Press, 1936.
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BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
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WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 2004.
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HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
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