Introdução
O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1960, trouxe conquistas jurídicas fundamentais para afro-americanos e outras minorias raciais. Entre elas, destaca-se o Voting Rights Act de 1965, que derrubou práticas discriminatórias no voto. No entanto, o caminho da representatividade abriu espaço para novas formas de engenharia eleitoral. A criação de distritos majoritariamente negros ou hispânicos, chamados majority-minority districts, buscou garantir a eleição de representantes dessas comunidades. Contudo, críticos os enxergam como verdadeiros “bantustões eleitorais”, currais que fortaleceram o Partido Democrata e limitaram a integração política do país.
O Voting Rights Act e a engenharia eleitoral
A lei de 1965 surgiu em resposta à exclusão histórica dos negros do voto, especialmente no Sul segregacionista. Testes de alfabetização, taxas de votação e intimidações impediam o pleno exercício da cidadania. O Voting Rights Act proibiu essas barreiras e permitiu a supervisão federal em estados com histórico de discriminação.
Nos anos seguintes, decisões da Suprema Corte e interpretações do Departamento de Justiça favoreceram a criação de distritos eleitorais onde minorias compunham a maioria. A justificativa era clara: sem esses arranjos, candidatos negros ou hispânicos dificilmente seriam eleitos, pois seus votos seriam diluídos em distritos brancos.
Distritos-bantustão: a crítica à segregação política
Se, por um lado, esses distritos aumentaram a diversidade no Congresso, por outro, consolidaram uma segregação política. A comparação com os bantustões sul-africanos não é descabida: assim como aqueles territórios “reservados” aos negros serviam para legitimar um sistema de exclusão, os distritos raciais nos EUA funcionaram como enclaves eleitorais, delimitados pelo critério da cor da pele ou da origem étnica.
O resultado foi paradoxal: em nome da representatividade, institucionalizou-se uma divisão racial no mapa político. A consequência prática foi transformar esses espaços em currais eleitorais previsíveis, nos quais o Partido Democrata colheu votos maciços de minorias, ao mesmo tempo em que reforçou os redutos republicanos em áreas suburbanas e rurais.
O jogo político: democracia ou manipulação?
Essa estratégia alimentou o fenômeno conhecido como gerrymandering racial: o desenho de distritos eleitorais para beneficiar determinado partido ou grupo. Embora tenha garantido a ascensão de lideranças negras e hispânicas, como congressistas e até prefeitos de grandes cidades, ela também limitou a competitividade política, ao criar fronteiras artificiais que fixaram identidades políticas em linhas raciais.
A longo prazo, a medida contribuiu para a polarização americana: um Partido Democrata identificado com minorias urbanas e um Partido Republicano associado à maioria branca suburbana e rural.
Conclusão
A criação dos distritos raciais revela uma contradição da democracia norte-americana. O Voting Rights Act nasceu para corrigir uma injustiça histórica, mas a solução encontrada gerou um novo tipo de segregação política. Se os bantustões do apartheid sul-africano representavam a exclusão territorial dos negros, os distritos raciais dos EUA representaram a inclusão pela separação, reforçando a ideia de que cada raça deveria ter o seu próprio espaço de representação.
Essa prática expõe os dilemas da engenharia democrática: até que ponto medidas de ação afirmativa fortalecem a cidadania ou apenas criam currais eleitorais? O desafio persiste em conciliar representatividade com integração, evitando que a democracia seja capturada por fronteiras raciais.
Bibliografia
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