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domingo, 12 de outubro de 2025

A economia como ciência moral: de Aristóteles a Henry Sidgwick

 I. Introdução

Há uma tradição esquecida que percorre toda a história da filosofia: a de compreender a economia não como uma técnica de enriquecimento, mas como uma ciência subordinada à ética. Desde Aristóteles até Henry Sidgwick, passando por John Stuart Mill, essa tradição insiste que o problema econômico é, antes de tudo, um problema moral — isto é, o problema do justo uso dos bens para o florescimento humano.

Em The Principles of Political Economy (1883), Sidgwick retoma a herança aristotélica sob uma nova forma: procura conciliar a racionalidade econômica moderna com as exigências éticas que, na Grécia antiga, eram o coração da phronesis, a sabedoria prática. O que resulta é uma espécie de “aristotelismo utilitarista”, que reintegra a moralidade ao cálculo econômico.

II. A teleologia aristotélica e a economia como parte da ética

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que “toda ação e toda escolha visam algum bem” — e o bem supremo é a eudaimonia, a felicidade entendida como vida plena conforme à virtude. A economia, ou oikonomiké, é apenas uma parte dessa grande arquitetura da vida boa: sua função é prover os meios materiais para que os cidadãos possam viver de modo virtuoso na pólis.

O estagirita distingue claramente entre a verdadeira economia, que administra bens em vista da virtude, e a chrematistiké, o simples acúmulo de riquezas pelo desejo ilimitado de posse. Essa distinção é decisiva: ela marca o limite entre uma ciência moral e uma técnica da cobiça. A riqueza, diz Aristóteles, é um meio; jamais um fim.

III. A transição moderna: John Stuart Mill e a moral do bem-estar

Séculos mais tarde, com o advento do liberalismo e da economia clássica, o vínculo entre ética e economia foi sendo rompido. John Stuart Mill, contudo, tentou restaurá-lo. Em On Liberty e Principles of Political Economy, Mill procurou harmonizar liberdade individual e bem-estar coletivo, afirmando que o Estado pode e deve intervir quando a liberdade de uns ameaça a dignidade de outros.

Em seu utilitarismo, Mill distingue prazeres “superiores” e “inferiores” — o que já constitui uma tentativa de reencontrar o ideal aristotélico de medida moral. Assim, se Aristóteles via a felicidade como realização da virtude, Mill passa a entendê-la como o resultado de uma ordem social racionalmente organizada para o bem comum.

Mas Mill permanece prisioneiro de uma tensão: seu utilitarismo é ético, mas ainda não filosófico no sentido aristotélico — ele carece de uma fundamentação racional do dever moral.

IV. Henry Sidgwick: um aristotélico racionalista em Cambridge

Henry Sidgwick, professor de Filosofia Moral na Universidade de Cambridge, percebeu essa limitação. Em The Principles of Political Economy, ele afirma que a economia é “um ramo da filosofia moral”, e que as leis econômicas só têm sentido quando subordinadas a uma concepção de dever e de bem comum.

Ao contrário de muitos economistas de sua época, Sidgwick não reduz o homem a um homo oeconomicus movido pelo interesse próprio. Ele o entende como um agente moralmente responsável, cuja racionalidade deve incluir o juízo ético sobre os fins e os meios da ação.

Sidgwick, portanto, não é apenas um economista: é um moralista no sentido clássico, que acredita ser possível compatibilizar o cálculo racional das consequências com a exigência do dever. A economia, para ele, é um campo em que se deve exercitar a prudência (phronesis) — virtude aristotélica que delibera bem sobre o que é bom e conveniente à vida humana.

V. Virtude, prazer e dever: entre a phronesis e o utilitarismo

O núcleo do diálogo entre Sidgwick e Aristóteles está justamente na concepção da razão prática.

  • Para Aristóteles, a phronesis é a faculdade que guia a ação rumo à virtude.

  • Para Sidgwick, a razão é a faculdade que calcula as consequências das ações em vista do bem racional.

Ambos admitem que o prazer é um sinal da boa vida, mas não seu fim último. Sidgwick adapta o prazer aristotélico — que acompanha a virtude — ao contexto moderno: o prazer é bom quando é racionalmente harmonizado com o bem coletivo. Assim, substitui a teleologia metafísica por uma moral consequencialista, sem perder de vista o horizonte da justiça.

VI. Justiça e Estado: de Aristóteles à economia moral moderna

Na Ética a Nicômaco e na Política, Aristóteles ensina que a justiça é a virtude perfeita, porque diz respeito ao bem dos outros. Ela se divide em distributiva e comutativa: a primeira regula a repartição de bens conforme o mérito; a segunda, a igualdade nas trocas.

Sidgwick, por sua vez, reinterpreta essa doutrina à luz da sociedade industrial. Para ele, a justiça distributiva exige equilíbrio entre liberdade e equidade — não uma igualdade mecânica, mas uma ordem que assegure dignidade e oportunidade a todos. O Estado deve intervir para corrigir distorções injustas do mercado, sem abolir a liberdade individual.

Essa prudência estatal, inspirada na ética, faz de Sidgwick o precursor de uma economia moral do bem-estar — algo que, mais tarde, seria desenvolvido por Arthur Pigou e John Maynard Keynes, seus herdeiros intelectuais em Cambridge.

VII. Conclusão: a restauração da economia como arte moral

Aristóteles ensina que o verdadeiro bem político consiste em “fazer os cidadãos bons e justos”.
Sidgwick, séculos depois, retoma esse ideal com os instrumentos da razão moderna. Entre a phronesis aristotélica e o cálculo utilitarista, ele constrói uma ponte: mostra que a economia só é ciência autêntica quando permanece fiel à ética.

Assim, podemos dizer que Sidgwick é um aristotélico racionalista — não porque partilhe da metafísica do Estagirita, mas porque conserva o mesmo espírito: o de subordinar o saber técnico ao bem humano, a riqueza à virtude, e o cálculo ao dever.

No fundo, tanto Aristóteles quanto Sidgwick buscam o mesmo ideal: que a vida econômica não seja uma guerra de apetites, mas uma comunhão ordenada de esforços em direção ao bem comum.
E se o primeiro fundou a filosofia moral sobre a virtude, o segundo procurou traduzi-la em termos de racionalidade ética — lembrando-nos, em pleno século XIX, que a economia, sem moral, é apenas a técnica da servidão.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. Lisboa: Gulbenkian, 2004. 

ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB, 1998. 

MILL, John Stuart. Principles of Political Economy. London: Longmans, 1848. 

MILL, John Stuart. Utilitarianism. London: Parker, Son, and Bourn, 1863. 

SIDGWICK, Henry. The Methods of Ethics. London: Macmillan, 1874. 

SIDGWICK, Henry. The Principles of Political Economy. London: Macmillan, 1883. 

PIGOU, Arthur Cecil. The Economics of Welfare. London: Macmillan, 1920. 

KEYNES, John Maynard. Essays in Biography. London: Macmillan, 1933.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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