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sábado, 18 de outubro de 2025

A Questão do Pirara e sua conexão com a Questão do Essequibo

Introdução

A Questão do Pirara foi um dos episódios mais dolorosos da diplomacia brasileira no século XIX e início do XX. O episódio representou a perda de mais de 19 mil km² de território para o Império Britânico, que na época controlava a Guiana. Embora aparentemente limitada, essa perda teve grande impacto estratégico, porque afetava a ligação do Brasil com a bacia do rio Essequibo, um espaço-chave de acesso ao Atlântico Norte. Hoje, ao observarmos a atual Questão do Essequibo, entre Venezuela e Guiana, percebe-se um elo histórico direto entre os dois contenciosos.

A Questão do Pirara

O conflito começou quando o Reino Unido, após assumir a Guiana dos holandeses em 1814, passou a contestar os antigos entendimentos ibéricos sobre fronteiras. A lógica de Portugal e Espanha era simples: rios que corriam para a Amazônia ficariam sob domínio português, e os que corriam para o Atlântico, sob domínio espanhol. Os britânicos, porém, ignoraram esse princípio e avançaram sobre áreas pertencentes tanto ao Brasil quanto à Venezuela.

A região do Pirara, situada entre os rios Takutu e Rupununi, conectava-se ao Essequibo e ao Oceano Atlântico. Ou seja, o Brasil poderia ter uma rota alternativa de saída ao Mar do Caribe, mas perdeu essa possibilidade quando os britânicos consolidaram presença por meio de expedições exploratórias (Robert Schomburg, anos 1830), missões religiosas anglicanas e, depois, pela instalação de marcos fronteiriços.

Apesar da resistência brasileira, simbolizada pelo Forte de São Joaquim e pela defesa feita por Joaquim Nabuco em arbitragem internacional, o laudo de 1904, emitido pelo rei da Itália, entregou cerca de 60% da área disputada ao Reino Unido.

O elo com a Questão do Essequibo

A conexão entre as duas disputas é geopolítica e estrutural:

1. Origem comum na expansão britânica: Tanto no Pirara quanto no Essequibo, a lógica foi a mesma: ocupação efetiva e alianças com indígenas, aproveitando o vazio demográfico e as fragilidades de defesa de fronteira.

2. O eixo Rupununi–Essequibo: O Pirara está no mesmo corredor hidrográfico que liga os afluentes do Takutu e Rupununi ao Essequibo. Assim, a perda do Pirara enfraqueceu o Brasil no mesmo tabuleiro onde a Venezuela também enfrentaria litígios contra o Reino Unido.

3. Doutrina internacional do “uti possidetis” e da “ocupação efetiva”: No laudo arbitral do Pirara, prevaleceu a visão de que mapas e títulos históricos não bastavam se não houvesse ocupação contínua. Essa mesma interpretação, inspirada no Congresso de Berlim (1885), é usada até hoje nos debates sobre o Essequibo.

4. Herança para a Venezuela: Se o Brasil perdeu território para a Guiana Britânica, a Venezuela herdou a disputa que se prolonga até hoje na forma da Questão do Essequibo — um litígio que envolve mais de 159 mil km², riquíssimos em recursos naturais.

Consequências geopolíticas

  • Para o Brasil, a perda do Pirara significou encerramento de sua possibilidade de acesso direto ao Atlântico Norte pela bacia do Essequibo.

  • Para a Venezuela, a disputa pelo Essequibo segue viva no século XXI, agora agravada pela descoberta de grandes reservas de petróleo e gás na região.

  • Para a Guiana, primeiro sob o Reino Unido e depois independente, essas disputas consolidaram uma posição estratégica desproporcional ao seu tamanho, servindo como buffer state na Amazônia setentrional.

Conclusão

A Questão do Pirara e a Questão do Essequibo são capítulos distintos de um mesmo processo: o avanço britânico sobre a América do Sul durante o século XIX, baseado em poder naval, diplomacia de arbitragem e uso da doutrina da “ocupação efetiva”. Para o Brasil, a perda foi definitiva; para a Venezuela, o conflito segue aberto. Ambas, porém, revelam como a geopolítica amazônica sempre esteve vinculada ao controle das vias fluviais rumo ao Atlântico Norte e como as potências coloniais exploraram fragilidades das jovens nações sul-americanas.

Bibliografia

  • ALMEIDA, Paulo Roberto de. A diplomacia brasileira e o laudo arbitral de 1904: a Questão do Pirara revisitada. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 47, 2004.

  • BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: da Independência até 1870. São Paulo: Edusp, 2001.

  • FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Edusp, 2021.

  • NABUCO, Joaquim. Escritos e discursos diplomáticos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

  • RAMOS, João Daniel. Amazônia e geopolítica: o Pirara e o Essequibo. Manaus: EDUA, 2015.

  • RANGEL, Vicente. La Guayana Esequiba y el Derecho Internacional. Caracas: Editorial Jurídica Venezolana, 2017.

  • SANTOS, Luiz Cláudio Villafañe G. O Brasil entre a América e a Europa: o Império e o interamericanismo. São Paulo: Unesp, 2003.

  • SILVA, Alberto da Costa e. O território e o poder: fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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