Introdução
O debate sobre os direitos naturais percorre a filosofia política desde a modernidade, encontrando em John Locke e Edmund Burke dois dos principais interlocutores. No entanto, o tema ganha densidade quando confrontado com a tradição católica e, em especial, com a encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII, que inaugura a Doutrina Social da Igreja. A partir desses referenciais, este artigo propõe o conceito de direito natural de crédito, entendido como um prolongamento do direito ao nome e ao bom nome, patrimônio imaterial da família transmitido ao herdeiro, fundado na dignidade da pessoa humana e confirmado nos méritos de Cristo.
1. Do nome ao bom nome: identidade e dignidade
O direito ao nome é reconhecido como atributo da personalidade. Contudo, não se pode reduzir a identidade humana a um dado meramente formal ou registral. Existe também o direito ao bom nome, isto é, à honra, à reputação e à confiabilidade associadas ao nome da família. O princípio accessorium sequitur principale (o acessório segue o principal) fundamenta essa extensão: herdar o nome implica herdar também os efeitos da reputação que o acompanha. Nesse sentido, herdar o “score de crédito” da família não é apenas metáfora, mas realidade social que condiciona o acesso do herdeiro a contratos e oportunidades. O bom nome, portanto, constitui patrimônio imaterial inalienável, expressão concreta da dignidade da pessoa humana.
2. Locke: propriedade e crédito como extensão do trabalho
Na filosofia liberal de John Locke, os natural rights incluem vida, liberdade e propriedade. A propriedade nasce do trabalho: ao misturar sua atividade com a natureza, o homem adquire domínio legítimo sobre os bens. O crédito, entendido como confiança social, pode ser lido como prolongamento desse processo: aquele que trabalha e cumpre suas obrigações constrói reputação, e esta reputação se converte em capital social transmissível aos seus descendentes. Em chave lockeana, o direito natural de crédito se conecta à noção de propriedade como fruto do labor humano.
3. Burke: herança e pacto intergeracional
Edmund Burke, crítico da Revolução Francesa, concebia a sociedade como um pacto entre mortos, vivos e os que ainda nascerão. Para ele, a herança não se limita a bens materiais, mas abrange instituições, tradições e valores. A reputação da família é um desses títulos herdados, que gera direitos e deveres. O crédito, como confiança social acumulada, insere-se nessa lógica: o herdeiro não é indivíduo isolado, mas participante de uma corrente que atravessa gerações. Em chave burkeana, o direito natural de crédito é parte do capital moral da civilização, transmitido pela família e sustentado pelo tempo.
4. A tradição católica: dignidade, justiça e confiança
A tradição católica vê o direito natural não apenas como construção racional, mas como reflexo da ordem da Criação. A dignidade da pessoa humana — fundada na imagem de Deus e elevada pela Encarnação de Cristo — é a base de todos os direitos. O crédito, nessa perspectiva, ultrapassa o plano econômico: ele expressa a virtude da fides, confiança que sustenta tanto a vida social quanto a vida sobrenatural. Herdar o bom nome, portanto, não é só usufruir de capital social, mas partilhar de um bem espiritual que pertence à família como célula originária da sociedade. O direito natural de crédito, neste quadro, é inseparável da dignidade do homem e se realiza nos méritos de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.
5. Rerum Novarum: propriedade, herança e crédito social
A encíclica Rerum Novarum de Leão XIII consagra a propriedade privada como direito natural, fundado no trabalho e protegido pela justiça. Mas vai além: reconhece que a família é sociedade natural anterior ao Estado e que a dignidade do trabalhador deve ser respeitada.
Nesse horizonte, pode-se compreender o crédito como capital moral e social herdado, parte do patrimônio que a família transmite. Assim como a terra ou a casa, também a confiança social é um bem que acompanha a sucessão. O direito natural de crédito dialoga, portanto, com a Rerum Novarum ao afirmar que a dignidade da pessoa humana e os méritos de Cristo exigem a preservação do bom nome como patrimônio inalienável da família.
Conclusão
A articulação entre Locke, Burke e a tradição católica, iluminada pela Rerum Novarum, permite formular o conceito de direito natural de crédito.
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Em Locke, o crédito é extensão da propriedade fundada no trabalho.
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Em Burke, é herança moral transmitida entre gerações.
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Na tradição católica, é reflexo da dignidade da pessoa humana e da virtude da confiança.
Na síntese cristã de Leão XIII, o bom nome e a reputação se tornam patrimônio legítimo da família, inseparável da dignidade, protegido por direito natural e elevado pela graça de Cristo.
Assim, podemos afirmar que não basta o direito ao nome: existe também o direito ao bom nome, que constitui um direito natural de crédito, expressão concreta da ordem da criação e fundamento de uma sociedade verdadeiramente humana e cristã.
📚 Bibliografia essencial
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LOCKE, John. Second Treatise of Government. 1690.
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BURKE, Edmund. Reflections on the Revolution in France. 1790.
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LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891.
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LOVEJOY, Arthur O. The Great Chain of Being. 1936.
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SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. 1818.
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