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domingo, 19 de outubro de 2025

Pluralidade de Domicílios e Representatividade Eleitoral: um debate constitucional na Era dos Nômades Digitais

Introdução

O tema da representatividade política no Brasil ainda é dominado pela lógica da territorialidade única: cada cidadão está vinculado a um domicílio eleitoral, onde exerce o direito de voto. Entretanto, a realidade contemporânea desafia esse modelo. Indivíduos que possuem imóveis em diferentes cidades, pagam impostos municipais e estaduais em diversas localidades e desenvolvem interesses econômicos e sociais plurais, veem-se limitados por uma legislação que não acompanha a complexidade da vida moderna.

Esse problema ganha contornos ainda mais relevantes no contexto dos chamados nômades digitais, sobretudo na distinção entre aqueles que apenas transitam sem vínculos e os que, ao contrário, estabelecem raízes múltiplas, adquirem propriedades e constroem laços comunitários. Nesse artigo, defendemos que a impossibilidade de pluralidade de domicílios eleitorais pode ser questionada sob a ótica constitucional e à luz das novas formas de cidadania.

1. Domicílio civil versus domicílio eleitoral

O Código Civil (arts. 70 a 78) admite a existência de múltiplos domicílios civis. É comum, por exemplo, que alguém possua residência em mais de uma cidade, especialmente quando divide sua vida profissional, familiar ou econômica em diferentes localidades.

O Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), entretanto, é restritivo: cada cidadão só pode estar inscrito em um único domicílio eleitoral. Esse limite tem como objetivo impedir fraudes, duplicidade de votos e manipulação eleitoral. Contudo, ao adotar essa restrição absoluta, a legislação cria um hiato entre a vida civil e a vida política do eleitor.

2. Tributação e representação

O problema se agrava quando se observa que o cidadão contribui para diferentes administrações municipais e estaduais, por meio do IPTU, ICMS e outras obrigações fiscais. Aqui emerge o princípio clássico do constitucionalismo moderno: “no taxation without representation”.

Se alguém paga tributos em Manaus, Fortaleza, Rio de Janeiro e Tabatinga, por que não deveria ter direito de voz e voto em cada uma dessas localidades? A negativa de pluralidade eleitoral, nesse contexto, gera uma contradição: o Estado cobra tributos, mas restringe a participação política do contribuinte, que só pode se manifestar em uma única circunscrição eleitoral.

3. Inconstitucionalidade da limitação

A tese de que a impossibilidade de pluralidade eleitoral é inconstitucional pode se apoiar em três fundamentos:

  1. Princípio da isonomia: trata desigualmente cidadãos que, apesar de assumirem encargos fiscais em várias localidades, têm direito político restrito a apenas uma delas.

  2. Princípio da razoabilidade: não se mostra razoável exigir ônus em diversos lugares e oferecer representação política apenas em um.

  3. Princípio da democracia participativa: a democracia exige que todos os interesses legítimos de cidadãos sejam contemplados. No caso de quem tem múltiplos domicílios, o interesse é plural.

4. Nômades digitais e cidadania enraizada

A globalização e a digitalização criaram novas formas de habitar o mundo. O nômade digital líquido, conforme a análise de Zygmunt Bauman, é marcado pela ausência de vínculos duradouros: desloca-se de lugar em lugar sem estabelecer laços.

Por outro lado, surge uma categoria distinta, que aqui chamaremos de nômade digital nacionista: aquele que, mesmo em deslocamento, busca criar vínculos sólidos, adquirir imóveis, contribuir economicamente e servir à sua comunidade. Essa figura rompe com a lógica do desapego e se aproxima de uma visão de cidadania plural, baseada em raízes múltiplas.

Negar a esse sujeito a possibilidade de representação múltipla é, de certo modo, ignorar a transformação do mundo contemporâneo.

5. Perspectivas de reforma

Algumas possibilidades de atualização legislativa poderiam ser debatidas:

  • Representação fiscal ampliada: criar mecanismos de consulta ou conselhos locais em que todo contribuinte possa participar, mesmo sem título eleitoral múltiplo.

  • Domicílio eleitoral plural controlado: permitir que um eleitor tenha direito a voto em mais de um domicílio, com regras que evitem distorções na proporcionalidade política.

  • Cidadania em rede: reconhecer que, em tempos de globalização e mobilidade, a cidadania não se limita a um território fixo, mas se distribui em redes de vínculos.

Conclusão

A vedação absoluta à pluralidade de domicílios eleitorais no Brasil parece desatualizada diante da realidade dos cidadãos contemporâneos. Quando alguém tem múltiplos imóveis, paga impostos em diversas localidades e constrói vínculos sociais plurais, a exigência de um único domicílio eleitoral deixa de refletir a justiça representativa.

O futuro da democracia pode exigir repensar o modelo vigente, equilibrando a unidade do eleitor com a diversidade de seus interesses e vínculos. A figura do nômade digital nacionista talvez seja o sinal mais claro de que o direito precisa evoluir para reconhecer novas formas de pertencimento político.

Bibliografia

  • BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

  • BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

  • BRASIL. Código Eleitoral. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

  • FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito Constitucional Democrático. São Paulo: Saraiva, 2017.

  • KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

  • LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

  • MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.

  • TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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