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sábado, 18 de outubro de 2025

História Contrafactual e planejamento ex nihilo: entre a imaginação crítica e o conservantismo revolucionário

Introdução

A relação entre imaginação e história sempre gerou debates intensos. De um lado, a história contrafactual busca explorar as possibilidades não realizadas do passado, servindo como ferramenta heurística para a ciência social. De outro, a tradição iluminista — sobretudo no contexto da emancipação hispano-americana — produziu projetos políticos que se pretendiam fundadores, muitas vezes desconectados da realidade cultural local. Este artigo propõe distinguir essas duas abordagens, mostrando como a primeira se ancora em possibilidades reais e a segunda deriva de um planejamento ex nihilo, de caráter utópico e artificial.

1. A história contrafactual como método

A história contrafactual não se reduz a ficção ou mera especulação. Ela parte de um dado real e o projeta em direções possíveis que poderiam ter ocorrido sob outras circunstâncias. Trata-se de um exercício de possibilidade, que não cria fatos, mas explora caminhos alternativos.

  • Exemplo: imaginar como seria a política americana se Alberta tivesse se tornado o 51º estado dos EUA na década de 1930.

  • Esse exercício não é gratuito: ajuda a perceber o alcance do New Deal e a visualizar soluções possíveis que estavam latentes, mas não realizadas.

Assim, a contrafactualidade rompe com a rigidez do materialismo histórico ou sociológico, que tende a tomar o fato social como uma "coisa" dada e inquestionável. Ao invés disso, ilumina horizontes invisíveis de decisão, mostrando que a história é feita também por alternativas não concretizadas. 

2. O planejamento iluminista ex nihilo

Em contraste, os libertadores da América Hispânica — de Bolívar a San Martín — muitas vezes operaram num regime de planejamento ex nihilo. Inspirados pela Revolução Francesa ou pelo constitucionalismo norte-americano, tentaram importar tradições políticas alheias, transplantando instituições e modelos sem conexão profunda com a tradição hispano-americana.

Este processo não partia de um “poder do possível” já existente, mas da crença de que seria possível inventar tradições e moldar comunidades inteiras a partir de princípios universais abstratos.

  • Assim nasceram projetos de constituições, confederações e repúblicas que, em grande medida, ignoraram as estruturas locais de poder, costumes e práticas sociais.

  • Mais do que contrafactual, isso se aproximava de uma utopia racionalista, que beirava ao que se pode chamar de conservantismo revolucionário: a tentativa de perpetuar o ímpeto revolucionário como fundamento perene de uma nova ordem.

3. Comunidades Imaginadas e a utopia iluminista

Benedict Anderson, ao falar de "comunidades imaginadas", descreveu como a nação moderna se forma a partir de narrativas partilhadas, mesmo entre indivíduos que nunca se conhecerão. No caso da América Hispânica, porém, a comunidade imaginada iluminista se configurou de modo peculiar:

  • não emergiu de uma tradição cultural orgânica,

  • mas de um ato de vontade política, que pretendia fundar novas nações sobre modelos importados.

Enquanto a história contrafactual trabalha com “e se” enraizados em realidades passadas, o projeto iluminista hispano-americano foi um exercício de “como deveria ser”, sustentado por uma engenharia política descolada do real.

4. Contrafactualidade vs. Conservantismo Revolucionário

A diferença fundamental pode ser assim sintetizada:

  • História contrafactual: imaginação crítica, científica, enraizada em dados reais; ilumina alternativas possíveis e auxilia a compreensão da contingência histórica.

  • Planejamento ex nihilo iluminista: invenção artificial de tradições, projetadas como universais, mas desligadas do contexto local; tende a utopias políticas e ao conservantismo revolucionário.

Um método é ferramenta de compreensão; o outro, tentativa de imposição ideológica.

Conclusão

A história contrafactual e o planejamento iluminista representam dois usos distintos da imaginação no campo da política e da historiografia. Enquanto a primeira contribui para a ciência social ao revelar o não-dito e o não-realizado, a segunda busca moldar realidades a partir de abstrações descoladas da experiência histórica concreta. No contraste entre ambas, percebe-se a tensão entre imaginação crítica e utopia racionalista — tensão que marca a própria história das Américas.

📚 Sugestões de leitura

  • Fogel, Robert W. Without Consent or Contract: The Rise and Fall of American Slavery (exemplo de uso contrafactual aplicado à escravidão).

  • Ferguson, Niall. Virtual History: Alternatives and Counterfactuals.

  • Anderson, Benedict. Imagined Communities.

  • Bolívar, Simón. Carta da Jamaica (exemplo de planejamento ex nihilo).

  • Lynch, John. The Spanish American Revolutions, 1808–1826.

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