1. Introdução
O simples ato de plantar uma árvore frutífera, como o cajueiro, pode parecer apenas um gesto cotidiano. Contudo, quando pensamos no valor simbólico de seus frutos — transformados em doces, conservas ou lembranças —, percebemos que estamos diante de um fenômeno que transcende o campo da botânica ou da culinária. Trata-se de uma intersecção entre memória, afeto e economia, onde os frutos não são apenas alimento, mas também bens privados carregados de significados sociais e culturais.
2. O bem privado como lembrança
O cajueiro plantado na terra natal gera frutos que podem ser consumidos localmente ou enviados para parentes e amigos. Ao serem transformados em doces e remetidos a alguém distante, esses frutos deixam de ser apenas produtos naturais: tornam-se lembranças vivas. Nesse gesto, a família envia não só alimento, mas também a presença da terra e dos vínculos afetivos.
A frase simbólica “Ele te manda lembranças!” confere à árvore uma dimensão quase humana. É como se a natureza fosse também parte da família, mediando a relação entre os ausentes.
3. A economia da dádiva (Marcel Mauss)
Na clássica obra Ensaio sobre a Dádiva (1925), Marcel Mauss mostrou que presentes nunca são “gratuitos”: eles carregam obrigações de dar, receber e retribuir. O doce de caju enviado ao migrante, ou oferecido como presente a alguém, insere-se nesse circuito da dádiva. Ele não é uma mercadoria vendida, mas também não é um bem sem valor. Seu valor é simbólico e social, capaz de construir e reforçar vínculos.
4. A dação em pagamento e o capital relacional
No campo jurídico, o conceito de dação em pagamento aparece quando um bem é entregue em substituição ao dinheiro para saldar uma dívida. No caso do doce artesanal, ele pode compensar favores, simbolizar gratidão ou até funcionar como um “pagamento relacional”. Aqui, a moeda não é o real nem o dólar, mas sim o capital social que se acumula e se redistribui nas relações.
Esse raciocínio ecoa a tese de Karl Polanyi, em A Grande Transformação (1944), segundo a qual nem todas as trocas humanas podem ou devem ser absorvidas pela lógica de mercado. Há bens e vínculos que pertencem a outra ordem — a ordem da reciprocidade e do enraizamento cultural.
5. O impacto no exterior
Quando transposto para o cenário internacional, o valor desses bens cresce. Um doce artesanal de caju, enviado do Brasil para alguém no exterior, adquire um caráter de raridade e identidade cultural. Ele se torna um pedaço da pátria, um elo com as raízes.
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Como lembrança, traz consigo a memória e o afeto da terra natal.
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Como moeda social, funciona como presente de prestígio, capaz de abrir portas e consolidar relações.
Mas esse mesmo bem encontra limites claros quando tenta entrar no mercado formal.
6. O peso da alfândega e da vigilância
O Estado impõe barreiras quando se tenta transformar a lembrança em mercadoria. Frutos e doces enviados para fins comerciais estão sujeitos a:
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Fiscalização alfandegária, com cobrança de tributos e registro formal;
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Fiscalização fitossanitária, para prevenir pragas e garantir padrões de saúde pública;
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Controle de escala, que impede que pequenos envios informais se convertam em atividade comercial sem regulamentação.
Aqui se traça a fronteira entre o bem privado da dádiva e a mercadoria regulada do comércio internacional.
7. Conclusão
O exemplo do cajueiro mostra como a economia não se resume ao mercado. Existe uma esfera afetiva e relacional, onde os frutos de uma árvore podem ser lembranças ou moeda simbólica de troca. Essa esfera, contudo, esbarra na regulação do comércio formal quando se tenta transformá-la em atividade lucrativa.
Como ensinou Mauss, a dádiva é portadora de uma força que transcende o cálculo monetário, e como lembrou Polanyi, o mercado não é a única nem a mais antiga forma de organizar a vida econômica. Assim, o cajueiro nos ensina que a dádiva pertence ao mundo da liberdade e da memória, enquanto o comércio pertence ao mundo da lei e da fiscalização.
Bibliografia
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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
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POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
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SELIGMAN, Adam. The Problem of Trust. Princeton: Princeton University Press, 1997.
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BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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