A decisão do Governo do Ceará de subsidiar novos voos internacionais para a Europa, por meio do Decreto nº 36.878/2025, vai além de uma política setorial de turismo. Trata-se de um movimento geopolítico que reposiciona o Brasil no Atlântico Sul, abre uma disputa direta com hubs consolidados como Lisboa, Madri e Casablanca, e inaugura uma nova etapa na relação entre o Nordeste e os grandes blocos econômicos globais.
1. Fortaleza e a geografia do poder aéreo
Fortaleza possui uma vantagem geográfica inata: é a capital brasileira mais próxima da Europa e dos Estados Unidos em linha reta. Isso reduz custos operacionais e tempo de voo. Historicamente, o Brasil concentrou seus fluxos internacionais em São Paulo e Rio de Janeiro, ignorando o potencial do Nordeste. Agora, com incentivos fiscais (isenção de ICMS do querosene) e financeiros (até R$ 10 milhões/ano por rota), o Ceará busca reverter essa lógica centralizadora.
Assim, Fortaleza assume papel similar ao de Lisboa em relação à Europa: um ponto de ancoragem atlântica, cuja função excede o turismo e alcança logística, comércio exterior e até segurança estratégica.
2. Multipolaridade aérea e blocos globais
A entrada confirmada da Iberia (Grupo IAG) e o interesse da Discover Airlines (Lufthansa Group) colocam Fortaleza no mapa dos grandes conglomerados aéreos internacionais. Somados à Air France-KLM, TAP e LATAM, formam cinco forças globais competindo no mesmo hub.
Esse arranjo gera:
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Competição tarifária, reduzindo custos para passageiros;
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Multipolaridade de alianças: Fortaleza deixa de ser satélite da TAP (Lisboa) para se tornar um ponto neutro, onde diversos blocos disputam rotas;
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Soft power diplomático: cada novo voo é também uma ponte cultural e política com a Europa.
3. O vetor Itália: entre diáspora e soft power
Um destino natural para expansão da LATAM é a Itália (Roma ou Milão). A ligação direta com Fortaleza já existiu nos anos 2000 e atende não apenas ao turismo, mas também a uma dimensão civilizacional: os italianos figuram entre os três grupos europeus que mais visitam o Ceará.
Reativar esses voos reforça:
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Laços migratórios e culturais;
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O papel do Ceará como porta de entrada da latinidade europeia no Brasil;
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A inserção do Nordeste em redes históricas de circulação, agora renovadas no século XXI.
4. Do turismo à segurança estratégica
Os voos internacionais não movimentam apenas pessoas: eles transportam toneladas de carga no porão, integrando cadeias globais de suprimentos.
Isso produz implicações geopolíticas:
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Redundância logística: menos dependência dos portos/aeroportos do Sudeste;
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Capacidade de projeção militar indireta: corredores aéreos densos podem ser estratégicos em cenários de defesa e monitoramento do Atlântico;
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Integração Sul–Norte: Fortaleza emerge como alternativa sul-americana frente aos hubs africanos (Casablanca, Dakar) e caribenhos (Punta Cana, Miami).
5. Comparação com hubs atlânticos
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Lisboa: consolidou-se como ponto de conexão entre Europa, África e América Latina, explorando a língua portuguesa e a TAP como vetor estatal. Fortaleza pode desempenhar papel similar, mas com alcance regional no Brasil.
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Miami: porta de entrada dos EUA para a América Latina, funciona como nó cultural e logístico. Fortaleza pode ser o “Miami brasileiro” para a Europa.
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Casablanca/Dakar: hubs africanos que cresceram por incentivos estatais e posição geográfica estratégica. Fortaleza segue caminho paralelo, mas com maior escala de mercado interno.
Esses paralelos mostram que o hub aéreo é também um hub de poder, capaz de moldar redes comerciais e diplomáticas.
6. Conclusão
A política aérea cearense é, em essência, uma estratégia de soberania. Ao descentralizar a conectividade internacional do Brasil e criar um polo atlântico no Nordeste, o governo local projeta Fortaleza como nó geopolítico entre continentes.
Cada novo voo é mais do que uma rota: é uma linha de poder que redesenha o mapa da influência entre Europa, América e África. No século XXI, a guerra dos céus não se trava apenas com caças e bases militares, mas com aeronaves comerciais que carregam turistas, cargas e, sobretudo, influência.
Bibliografia
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DIÁRIO DO NORDESTE. Ceará terá mais voos diários para a Europa: Incentivo pode fazer de Fortaleza um hub internacional. 2025.
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SÁNCHEZ, Luis. Air Hubs and Global Power: The Strategic Role of Aviation in International Relations. London: Routledge, 2020.
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VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa brasileira: a busca da autonomia, de Sarney a Lula. São Paulo: UNESP, 2007.
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