Introdução
O fenômeno do chamado “jornalismo de ficção” vem ganhando espaço em plataformas digitais como o canal Crônicas do Brasil. Diferente das fake news, que são narrativas falsas travestidas de verdade com o intuito de manipulação e desinformação, o jornalismo de ficção assume, de forma explícita, sua natureza especulativa. Ele parte da estética e da forma jornalística, mas constrói narrativas que pertencem ao campo da imaginação, da possibilidade e da conotação.
No entanto, ao trazer para o formato jornalístico aquilo que não é real, esse gênero carrega tanto um potencial criativo e reflexivo, quanto riscos de incompreensão em contextos onde o déficit educacional e midiático é profundo.
Jornalismo de ficção x Fake News
A distinção entre o jornalismo de ficção e a desinformação é crucial.
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Fake news: narrativas falsas apresentadas como verdadeiras, com objetivo de enganar e manipular.
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Jornalismo de ficção: relatos assumidamente ficcionais, que utilizam a linguagem e a forma jornalística para criar narrativas possíveis, cenários especulativos ou histórias alternativas.
Enquanto o primeiro destrói a confiança pública, o segundo pode ampliá-la, desde que seja bem delimitado, por se apresentar como um exercício literário e de entretenimento.
A função da ficção na linguagem jornalística
A literatura sempre trabalhou com a ideia do “e se?” – seja nas utopias, distopias ou ucronias. O jornalismo de ficção, portanto, é uma transposição desse exercício para o formato jornalístico.
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Ele cria manchetes, reportagens e entrevistas fictícias que se conectam com possibilidades sociais ou históricas ainda não realizadas.
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Funciona como uma simulação cultural: uma forma de imaginar o futuro, explorar alternativas políticas ou refletir sobre dilemas morais.
Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados, lembra que toda narrativa midiática é uma construção; Roland Barthes, em Mitologias, mostra como os discursos carregam sentidos que ultrapassam o literal. O jornalismo de ficção está justamente nesse campo do simbólico, da conotação, onde se desdobram possibilidades.
O desafio brasileiro
No Brasil, entretanto, essa prática enfrenta um desafio de recepção.
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O baixo nível de educação midiática dificulta a distinção entre denotação (o fato real) e conotação (o sentido especulativo).
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Em um país onde boa parte da população ainda tem dificuldade de interpretar textos complexos, um produto jornalístico ficcional pode ser confundido com realidade.
Isso exige dos produtores sinais claros de demarcação: avisos, disclaimers, estilo visual distinto e, sobretudo, a transparência quanto ao caráter fictício do conteúdo.
Potencial educativo e cultural
Apesar dos riscos, o jornalismo de ficção pode ter um papel formativo:
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Educação crítica: ensina a ler o jornalismo como linguagem, e não apenas como “espelho da realidade”.
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Expansão da imaginação política: permite ao público refletir sobre futuros possíveis, alternativas sociais e consequências de decisões coletivas.
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Diálogo com a literatura: cria uma ponte entre jornalismo e ficção, resgatando o valor cultural da narrativa como ferramenta de pensamento.
Se bem conduzido, esse gênero pode ampliar horizontes intelectuais, convidando os cidadãos a pensar em hipóteses e a refletir criticamente sobre o presente.
Conclusão
O jornalismo de ficção não deve ser confundido com desinformação. Ele é um gênero híbrido que utiliza a forma jornalística para construir narrativas literárias, explorando possibilidades ainda não realizadas.
No entanto, seu êxito depende de um público capaz de diferenciar o real do especulativo, algo que no Brasil atual ainda é um desafio. Portanto, sua prática deve ser feita com parcimônia, clareza e responsabilidade.
Trata-se de uma iniciativa criativa e ousada, que pode contribuir para a cultura crítica e para a educação midiática, desde que não perca de vista o seu caráter: não informar sobre o que aconteceu, mas narrar aquilo que poderia acontecer.
Referências
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BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 1982.
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ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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SODRÉ, Muniz. A Máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
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CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon, 1988.
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