Introdução
Olavo de Carvalho defendeu que muitas ideias de Lutero na Reforma Protestante foram influenciadas pelo Islã, seja por contato direto com o Alcorão e hadiths, seja por vias indiretas através de sociedades iniciáticas e tradições culturais preservadas na Europa. Segundo ele, semelhanças como a permissividade do divórcio, a abolição do clero e a livre interpretação do texto sagrado não poderiam ser coincidência. O filósofo também atribui a Kant a desmoralização da oração e dos milagres, além de uma influência profunda na estética moderna, chegando a Adolf Loos e Le Corbusier.
Este artigo examina criticamente essas teses, comparando as afirmações com dados históricos, escritos de Lutero, tradições islâmicas e filosofia kantiana.
A tese das semelhanças entre Lutero e o Islã
Olavo afirma que Lutero teria tomado do Islã:
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O divórcio: permitido, mas “a coisa que Deus mais odeia” (uma formulação encontrada em hadiths de Maomé).
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O sacerdócio universal: negação de uma casta clerical exclusiva.
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A livre interpretação: cada fiel pode ler a Escritura por si
Sociedades iniciáticas e continuidade simbólica
Olavo sugere que sociedades iniciáticas (como a maçonaria) transmitiram simbolismo natural herdado do cristianismo medieval e do Islã. Isso explicaria como certos conceitos atravessaram séculos sem precisar de conspirações.
Verificabilidade
Estudos históricos confirmam que ordens como templários, rosa-cruzes e, mais tarde, a maçonaria, preservaram simbolismos esotéricos. Contudo, a ligação direta entre Lutero e tais tradições é difícil de comprovar. Não há documentação que associe Lutero a sociedades iniciáticas, mas o Renascimento foi permeado por redescobertas herméticas e cabalísticas.
Kant, oração e milagres
Olavo sustenta que Kant considerava a oração inútil, reduzindo-a a exercício moral, e que desmoralizou os milagres ao tratá-los como questão de crença subjetiva.
Verificabilidade
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Em Religião nos Limites da Simples Razão (1793), Kant realmente descreve a oração como prática simbólica, cujo valor é disciplinar e moralizador, não como comunicação com o divino.
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Kant rejeita milagres como violação da ordem natural e afirma que religião sem moralidade é superstição.
Ou seja, a leitura de Olavo é coerente com textos de Kant.
Kant e a arquitetura moderna
Olavo também liga Kant à estética funcionalista: edifícios sem ornamentos, reduzidos a sua finalidade prática. Ele conecta Kant a Adolf Loos (Ornament und Verbrechen, 1908) e à arquitetura modernista (Le Corbusier, Brasília).
Verificabilidade
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Kant não escreveu sobre arquitetura em termos diretos de ornamento, mas sua estética em Crítica da Faculdade do Juízo (1790) valoriza a finalidade da forma.
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Loos explicitamente chama o ornamento de “crime”. Embora não cite Kant, a ideia de função sobre forma tem raízes em filosofias iluministas e racionalistas, incluindo Kant.
Portanto, a influência é plausível como herança cultural, mas não documentada como leitura direta.
Conclusão
A hipótese de Olavo de Carvalho é ousada: a Reforma teria absorvido elementos islâmicos e, posteriormente, o mundo moderno estaria dominado por uma “herança kantiana” que minou a oração, os milagres e até a estética.
A verificabilidade mostra que:
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Algumas semelhanças são reais (divórcio, sacerdócio universal, oração como disciplina moral), mas podem ser explicadas tanto por afinidades de contexto quanto por contatos indiretos.
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Outras conexões são plausíveis, mas não demonstráveis (Lutero lendo o Alcorão; Kant inspirando diretamente Loos).
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O diagnóstico cultural de Olavo é consistente como interpretação filosófica, mas ainda carece de provas históricas documentais para ser aceito como fato.
Bibliografia
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Fontes primárias
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Lutero, Martinho. To the Christian Nobility of the German Nation (1520).
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Lutero, Martinho. The Estate of Marriage (1522).
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Religião nos Limites da Simples Razão. Kant, Immanuel (1793).
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Crítica da Faculdade do Juízo. Kant, Immanuel (1790).
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Loos, Adolf. Ornament und Verbrechen (1908).
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Fontes islâmicas
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Abu Dawud, Sunan, Livro do Divórcio.
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Ibn Majah, Sunan, Livro do Divórcio.
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Tradução latina do Alcorão por Robert de Ketton (1143).
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Estudos secundários
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Palacios, Miguel Asín. El Islam Cristianizado (1927).
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MacCulloch, Diarmaid. The Reformation: A History. Penguin, 2005.
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Kerr, Fergus. Theology After Wittgenstein. Oxford, 1986 (sobre Kant e religião).
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Banham, Reyner. Theory and Design in the First Machine Age. MIT Press, 1960.
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