Durante um safari, é possível observar um fenômeno curioso e profundamente revelador: ainda que um homem esteja sozinho dentro de um carro, o leão não o ataca. Aos olhos do animal, o homem e o automóvel são uma só coisa. O carro é percebido como um grande corpo, estranho, mas não ameaçador — uma presença que não desperta o instinto de caça. Só quando o homem sai do carro, revelando-se como um ser separado, o leão o identifica como presa.
Essa cena, aparentemente simples, encerra uma das lições mais sutis sobre a relação entre o homem e a técnica. No momento em que o homem entra no automóvel, ele se funde com sua criação: torna-se um “ser ampliado”, um híbrido de carne e metal, protegido pela carapaça da máquina. O leão não vê o homem, mas a forma total do artefato técnico. É como se, por um instante, o homem tivesse deixado de ser natureza para ser pura técnica.
Essa fusão nos leva a uma reflexão sobre a função essencial da técnica. Desde as origens da civilização, a técnica foi o meio pelo qual o homem buscou compensar sua vulnerabilidade diante do mundo natural. Sem garras, presas ou pelagem, o ser humano inventou instrumentos — primeiro a lança, depois a roda, o abrigo, o motor — para mediar sua relação com a natureza. Cada invenção é uma extensão do corpo e da mente. E, no caso do carro, trata-se de uma extensão tão eficiente que até o rei da selva é enganado.
Mas há também um lado filosófico mais profundo. O leão, ao não distinguir homem e máquina, nos revela algo sobre a própria identidade humana. A técnica, quando atinge certo grau de integração, dissolve as fronteiras entre o natural e o artificial, entre o sujeito e o objeto. O homem, dentro do carro, não é mais um indivíduo separado da natureza, mas um ser que transcendeu momentaneamente essa separação por meio de sua inteligência criadora.
Entretanto, essa fusão é frágil e ilusória. Basta abrir a porta do carro, expor o corpo nu ao sol da savana, para que o disfarce se desfaça e o homem volte a ser o que sempre foi: uma criatura vulnerável entre outras criaturas. O carro é um escudo temporário, não uma transformação ontológica. A técnica protege, mas não redime.
Há aqui, portanto, uma lição de humildade: o poder técnico não nos torna deuses, mas apenas estrategistas engenhosos diante do perigo. E, se o leão não nos ataca enquanto estamos dentro do carro, é porque nossa inteligência aprendeu a usar a aparência como defesa — não a força. O verdadeiro domínio do homem sobre a natureza não está na violência, mas na prudência, na capacidade de compreender as percepções do outro e agir de acordo com elas.
Em última análise, o leão e o carro nos ensinam que a técnica é uma forma de convivência disfarçada com o mundo natural. O homem, que constrói máquinas para sobreviver, precisa lembrar que cada invenção é apenas um modo de permanecer vivo dentro de uma ordem que o ultrapassa. A sabedoria está em reconhecer esse limite — e saber quando permanecer dentro do carro.
Bibliografia comentada
HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2006.
Obra fundamental para compreender a essência filosófica da técnica. Heidegger argumenta que a técnica moderna não é apenas um conjunto de instrumentos, mas um modo de revelar o real — um “enquadramento” que transforma tudo, inclusive o homem, em recurso.
SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1958.
Simondon analisa a técnica como algo vivo, dotado de uma gênese própria. Sua noção de “individuação técnica” ajuda a compreender o automóvel como um prolongamento do homem e não apenas uma ferramenta passiva.
ELLUL, Jacques. Le Système technicien. Paris: Calmann-Lévy, 1977.
Ellul vê a técnica como um sistema autônomo, que escapa ao controle humano e redefine as relações sociais e éticas. A fusão entre homem e carro no safari é um exemplo claro do domínio simbólico desse sistema.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Merleau-Ponty mostra como o corpo é a origem de toda percepção. A incorporação do carro como “extensão do corpo” remete diretamente à sua teoria da corporeidade.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Arendt diferencia o trabalho, a obra e a ação. O carro, enquanto obra humana, exemplifica o modo como o homem se distancia do mundo natural, mas também como se expõe ao perigo da alienação.
McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1964.
McLuhan define toda tecnologia como uma extensão do corpo e da mente. O carro é literalmente uma extensão dos pés e dos olhos — o que explica o modo como ele muda nossa relação com o ambiente e com os outros seres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário