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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A brecha legal canadense em matéria de Direitos Autorais - o marco temporal de 30 de dezembro de 2022 e seus efeitos sobre o domínio público

1. Introdução

A legislação canadense de direitos autorais, tradicionalmente considerada uma das mais equilibradas do mundo anglo-saxão, passou por uma alteração profunda no final de 2022. Com a sanção da Bill C-19, o prazo de proteção passou de 50 para 70 anos após a morte do autor. Contudo, o legislador optou por uma transição sem retroatividade, criando uma brecha temporal que hoje permite distinguir dois regimes jurídicos de proteção coexistentes no mesmo território.

Esse marco temporal, estabelecido em 30 de dezembro de 2022, determina que os autores falecidos antes dessa data permanecem sob o regime antigo (vida + 50 anos), enquanto aqueles falecidos em ou após essa data passam automaticamente ao regime novo (vida + 70 anos).

Essa decisão aparentemente técnica criou uma lacuna jurídica com efeitos econômicos e culturais consideráveis, sobretudo para editoras independentes, pesquisadores e empreendedores digitais que atuam no campo do domínio público.

2. O contexto jurídico: da antiga lei à Bill C-19

Antes da reforma, o Copyright Act do Canadá seguia o padrão mínimo da Convenção de Berna, protegendo obras por 50 anos após a morte do autor. Essa norma vigorou por décadas, distinguindo o Canadá dos Estados Unidos e da União Europeia, cujos prazos já haviam sido estendidos para 70 anos.

A alteração de 2022 não foi fruto de política interna, mas resultado de um compromisso internacional firmado no Acordo Estados Unidos–México–Canadá (USMCA/CUSMA), que exigia a harmonização dos prazos de proteção autoral entre os três países da América do Norte.

Contudo, o legislador canadense, ao implementar o novo prazo, optou deliberadamente por não aplicá-lo retroativamente. Isso significa que nenhuma obra cuja proteção já havia começado a contar sob o regime de 50 anos teve sua vigência estendida. Essa decisão, aparentemente técnica, preservou a segurança jurídica dos que já se beneficiavam do fluxo natural de obras ingressando no domínio público.

3. O marco temporal: 30 de dezembro de 2022

O 30 de dezembro de 2022 é a data de entrada em vigor da emenda legislativa. Ela opera como um divisor de águas:

  • Autores falecidos até 29 de dezembro de 2022 → suas obras continuam protegidas por 50 anos após a morte;

  • Autores falecidos a partir de 30 de dezembro de 2022 → suas obras passam a gozar de 70 anos de proteção.

Assim, o caso de Olavo de Carvalho (falecido em 24 de janeiro de 2022) enquadra-se claramente no primeiro grupo. As suas obras, no território canadense, entrarão em domínio público em 1º de janeiro de 2073, cinquenta anos após o ano de sua morte.

Trata-se de uma situação peculiar: vamos supor que Olavo tivesse falecido uma semana depois da entrada em vigor da nova lei - neste caso o prazo seria prorrogado automaticamente por mais 20 anos, até 2093. Essa diferença de poucos dias ilustra o caráter arbitrário, porém juridicamente eficaz, do marco temporal estabelecido pelo legislador.

4. As implicações econômicas e culturais

A consequência direta dessa brecha é o surgimento de um duplo mercado editorial dentro do próprio Canadá:

  • De um lado, as obras de autores falecidos antes da reforma, que entrarão em domínio público mais cedo;

  • De outro, as obras de autores posteriores a 30/12/2022, cujos direitos se estendem por duas décadas adicionais.

Editoras digitais e empreendedores literários têm explorado essa diferença para criar catálogos de domínio público antecipado, destinados ao mercado canadense. Como o Canadá reconhece a lex loci protectionis (isto é, a lei do local onde a proteção é reclamada), tais obras podem ser legalmente reproduzidas, digitalizadas e comercializadas no território canadense — ainda que continuem protegidas em outros países, como o Brasil ou os Estados Unidos.

Em termos práticos, isso significa que um editor canadense ou residente legal no Canadá pode vender e-books ou edições comentadas de autores falecidos antes de 30/12/2022, mesmo que tais obras ainda estejam sob proteção em outras jurisdições. Trata-se de uma forma legítima de arbitragem jurídica internacional, análoga à arbitragem cambial no campo financeiro.

5. Considerações Finais

A brecha canadense de 2022 é um caso paradigmático de como o direito transicional pode gerar oportunidades econômicas e culturais. Ao não estender retroativamente o novo prazo de 70 anos, o legislador canadense preservou o princípio da segurança jurídica e, involuntariamente, criou um ambiente favorável à circulação antecipada do conhecimento.

Para os estudiosos, editores e empreendedores digitais atentos, o Canadá torna-se assim um porto seguro do domínio público, onde a prudência legislativa e a clareza das datas abrem espaço para iniciativas legítimas de difusão cultural — inclusive de autores contemporâneos cujas obras, em outros países, permanecerão bloqueadas por décadas.

6. Referências

  • Copyright Act (R.S.C., 1985, c. C-42) – versão anterior e posterior à Bill C-19.

  • Bill C-19 – Budget Implementation Act, 2022, No. 1 (Royal Assent: 23 June 2022; in force: 30 December 2022).

  • USMCA/CUSMA, Art. 20.62 – Term of Protection.

  • Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, Art. 7.

  • Declarações interpretativas do Department of Innovation, Science and Economic Development (ISED), Canadá, 2022.

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