Resumo
O presente artigo analisa a impossibilidade jurídica de uma lei análoga à Sonny Bono Copyright Term Extension Act de 1998 ser validamente promulgada no Brasil. Demonstra-se que, à luz da Constituição Federal de 1988, tal norma seria materialmente inconstitucional por violar o princípio da irretroatividade da lei (art. 5º, XL), o direito adquirido da coletividade ao domínio público (art. 6º da LINDB) e a função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX). O estudo compara os fundamentos da decisão Eldred v. Ashcroft da Suprema Corte dos EUA com o modelo de segurança jurídica característico do civil law, evidenciando que o direito brasileiro concebe o domínio público não como um resíduo do direito autoral, mas como um direito positivo do povo, expressão da liberdade de criação e do progresso cultural.
1. Introdução
Em 1998, o Congresso norte-americano aprovou a Sonny Bono Copyright Term Extension Act, ampliando retroativamente o prazo de proteção autoral de vida + 50 anos para vida + 70 anos. A justificativa formal foi alinhar os Estados Unidos à União Europeia; o efeito real, porém, foi prolongar monopólios privados sobre obras que estavam prestes a ingressar no domínio público.
A constitucionalidade dessa extensão foi questionada no caso Eldred v. Ashcroft (2003). A Suprema Corte americana manteve a lei, entendendo que o Congresso poderia definir “limited times” (prazos limitados) a seu critério.
Em contraste, a Constituição brasileira de 1988 consagra princípios rígidos de irretroatividade, segurança jurídica e função social da propriedade. Diante disso, uma lei de idêntico teor seria, no Brasil, manifestamente inconstitucional.
2. O princípio constitucional da irretroatividade
O art. 5º, XL, da Constituição é categórico:
“A lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
Esse comando traduz uma tradição do direito romano-canônico: o tempo não retrocede sobre o ato perfeito.
A LINDB, em seu art. 6º, reforça:
“A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.”
A irretroatividade é, portanto, garantia de segurança jurídica, não apenas individual, mas também coletiva. No campo dos direitos autorais, a coletividade adquire o direito de acesso às obras após o prazo legal; tal expectativa, uma vez constituída, não pode ser frustrada por lei posterior que amplie a exclusividade.
3. O domínio público como direito adquirido da coletividade
A doutrina brasileira — de Pontes de Miranda a José de Oliveira Ascensão — reconhece que o domínio público é o momento em que o bem cultural retorna à comunhão social. A proteção autoral é temporária, mas o destino final da obra é pertencer ao público, em consonância com o art. 5º, XXIX, da Constituição:
“A lei assegurará aos autores [...] o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar, com vista ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.”
Logo, o domínio público não é um vazio jurídico: é o direito adquirido da sociedade. Ampliar retroativamente o prazo autoral retira da coletividade um bem que já estava na iminência de ser devolvido. Trata-se de expropriação legislativa do comum cultural, sem indenização nem utilidade pública — uma violação clara da função social da propriedade intelectual.
4. A lei Sonny Bono e o modelo americano de retroatividade
Nos Estados Unidos, o fundamento constitucional do copyright está no art. I, § 8, cl. 8 da Constituição:
“To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries.”
A expressão “limited Times” foi interpretada pela Suprema Corte como flexível, permitindo sucessivas extensões, desde que cada uma fosse formalmente limitada. Assim, a Lei Sonny Bono aplicou-se retroativamente a todas as obras ainda sob proteção, adiando por vinte anos o ingresso no domínio público.
Essa decisão reflete uma característica do common law: a supremacia do precedente legislativo e da conveniência econômica sobre o princípio da segurança jurídica abstrata. O Estado pode alterar o equilíbrio entre autor e público desde que não suprima a forma — apenas o conteúdo.
5. Por que seria inconstitucional no Brasil?
Se o legislador brasileiro instituísse uma lei análoga à Lei Sonny Bono, a norma seria materialmente inconstitucional por três motivos principais:
a) Violação da irretroatividade (art. 5º, XL)
A retroação só é admitida “para beneficiar o réu”. Aqui, o beneficiário seria o titular econômico, não o réu social. Logo, haveria retroatividade lesiva, expressamente proibida.
b) Ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (art. 6º LINDB)
O ingresso no domínio público é um ato jurídico perfeito previsto pela lei vigente ao tempo da morte do autor. Modificar o prazo posterior equivale a revogar retroativamente um direito consolidado.
c) Desvio da função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX)
A extensão retroativa não promove o desenvolvimento, mas o entorpece.Ela posterga a livre circulação do conhecimento e o acesso à cultura, contrariando o objetivo constitucional da limitação temporal.
6. Implicações práticas e filosóficas
A distinção entre o modelo americano e o brasileiro expressa duas concepções distintas de justiça:
| Aspecto | 🇧🇷 Brasil – Civil Law | 🇺🇸 EUA – Common Law |
|---|---|---|
| Natureza do copyright | Direito moral e patrimonial limitado | Direito econômico concedido pelo Estado |
| Retroatividade | Proibida, salvo benéfica | Admitida, se “razoável” |
| Domínio público | Direito adquirido coletivo | Estado residual após o monopólio |
| Função social | Essencial, explícita | Implícita, interpretativa |
No Brasil, a verdade jurídica funda a liberdade cultural: o tempo da lei é kairológico, ordenado ao bem comum. Nos EUA, o tempo da lei é cronológico e utilitário: mede-se pelo interesse econômico.
Assim, o princípio “a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” revela mais que uma regra técnica; ele expressa a ética do direito brasileiro, que reconhece na passagem do tempo a consumação da justiça e na memória cultural o direito do povo.
7. Conclusão
A Lei Sonny Bono representa, sob o prisma da Constituição de 1988, um exemplo paradigmático de retroatividade inconstitucional. Se transplantada para o Brasil, ela violaria o art. 5º, XL, o art. 6º da LINDB e o art. 5º, XXIX, por:
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negar o princípio da irretroatividade;
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frustrar o direito adquirido da coletividade ao domínio público;
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desvirtuar a função social da propriedade intelectual.
O domínio público não é uma ausência de direitos, mas a presença do direito comum. Sua defesa é dever de todo jurista e escritor que compreende que a liberdade criadora floresce não da extensão do monopólio, mas de sua justa limitação no tempo.
Referências essenciais
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Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
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Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942).
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Lei nº 9.610/1998 – Direitos Autorais.
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Eldred v. Ashcroft, 537 U.S. 186 (2003).
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U.S. Copyright Term Extension Act (1998) – Sonny Bono Act.
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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado.
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ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral.
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SILVEIRA, Newton. Propriedade Intelectual: Direito, Economia e Cultura.
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