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sábado, 1 de novembro de 2025

Sobre o princípio da irretroatividade da lei não-penal e sobre a inconstitucionalidade de uma lei análoga à “Lei Sonny Bono” no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo

O presente artigo analisa a impossibilidade jurídica de uma lei análoga à Sonny Bono Copyright Term Extension Act de 1998 ser validamente promulgada no Brasil. Demonstra-se que, à luz da Constituição Federal de 1988, tal norma seria materialmente inconstitucional por violar o princípio da irretroatividade da lei (art. 5º, XL), o direito adquirido da coletividade ao domínio público (art. 6º da LINDB) e a função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX). O estudo compara os fundamentos da decisão Eldred v. Ashcroft da Suprema Corte dos EUA com o modelo de segurança jurídica característico do civil law, evidenciando que o direito brasileiro concebe o domínio público não como um resíduo do direito autoral, mas como um direito positivo do povo, expressão da liberdade de criação e do progresso cultural.

1. Introdução

Em 1998, o Congresso norte-americano aprovou a Sonny Bono Copyright Term Extension Act, ampliando retroativamente o prazo de proteção autoral de vida + 50 anos para vida + 70 anos. A justificativa formal foi alinhar os Estados Unidos à União Europeia; o efeito real, porém, foi prolongar monopólios privados sobre obras que estavam prestes a ingressar no domínio público.

A constitucionalidade dessa extensão foi questionada no caso Eldred v. Ashcroft (2003). A Suprema Corte americana manteve a lei, entendendo que o Congresso poderia definir “limited times” (prazos limitados) a seu critério.

Em contraste, a Constituição brasileira de 1988 consagra princípios rígidos de irretroatividade, segurança jurídica e função social da propriedade. Diante disso, uma lei de idêntico teor seria, no Brasil, manifestamente inconstitucional.

2. O princípio constitucional da irretroatividade

O art. 5º, XL, da Constituição é categórico:

“A lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

Esse comando traduz uma tradição do direito romano-canônico: o tempo não retrocede sobre o ato perfeito.

A LINDB, em seu art. 6º, reforça:

“A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.”

A irretroatividade é, portanto, garantia de segurança jurídica, não apenas individual, mas também coletiva. No campo dos direitos autorais, a coletividade adquire o direito de acesso às obras após o prazo legal; tal expectativa, uma vez constituída, não pode ser frustrada por lei posterior que amplie a exclusividade.

3. O domínio público como direito adquirido da coletividade

A doutrina brasileira — de Pontes de Miranda a José de Oliveira Ascensão — reconhece que o domínio público é o momento em que o bem cultural retorna à comunhão social. A proteção autoral é temporária, mas o destino final da obra é pertencer ao público, em consonância com o art. 5º, XXIX, da Constituição:

“A lei assegurará aos autores [...] o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar, com vista ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.”

Logo, o domínio público não é um vazio jurídico: é o direito adquirido da sociedade. Ampliar retroativamente o prazo autoral retira da coletividade um bem que já estava na iminência de ser devolvido. Trata-se de expropriação legislativa do comum cultural, sem indenização nem utilidade pública — uma violação clara da função social da propriedade intelectual.

4. A lei Sonny Bono e o modelo americano de retroatividade

Nos Estados Unidos, o fundamento constitucional do copyright está no art. I, § 8, cl. 8 da Constituição:

“To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries.”

A expressão “limited Times” foi interpretada pela Suprema Corte como flexível, permitindo sucessivas extensões, desde que cada uma fosse formalmente limitada. Assim, a Lei Sonny Bono aplicou-se retroativamente a todas as obras ainda sob proteção, adiando por vinte anos o ingresso no domínio público.

Essa decisão reflete uma característica do common law: a supremacia do precedente legislativo e da conveniência econômica sobre o princípio da segurança jurídica abstrata. O Estado pode alterar o equilíbrio entre autor e público desde que não suprima a forma — apenas o conteúdo.

5. Por que seria inconstitucional no Brasil?

Se o legislador brasileiro instituísse uma lei análoga à Lei Sonny Bono, a norma seria materialmente inconstitucional por três motivos principais:

a) Violação da irretroatividade (art. 5º, XL)

A retroação só é admitida “para beneficiar o réu”. Aqui, o beneficiário seria o titular econômico, não o réu social. Logo, haveria retroatividade lesiva, expressamente proibida.

b) Ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (art. 6º LINDB)

O ingresso no domínio público é um ato jurídico perfeito previsto pela lei vigente ao tempo da morte do autor. Modificar o prazo posterior equivale a revogar retroativamente um direito consolidado.

c) Desvio da função social da propriedade intelectual (art. 5º, XXIX)

A extensão retroativa não promove o desenvolvimento, mas o entorpece.Ela posterga a livre circulação do conhecimento e o acesso à cultura, contrariando o objetivo constitucional da limitação temporal.

6. Implicações práticas e filosóficas

A distinção entre o modelo americano e o brasileiro expressa duas concepções distintas de justiça:

Aspecto 🇧🇷 Brasil – Civil Law 🇺🇸 EUA – Common Law
Natureza do copyright Direito moral e patrimonial limitado Direito econômico concedido pelo Estado
Retroatividade Proibida, salvo benéfica Admitida, se “razoável”
Domínio público Direito adquirido coletivo Estado residual após o monopólio
Função social Essencial, explícita Implícita, interpretativa

No Brasil, a verdade jurídica funda a liberdade cultural: o tempo da lei é kairológico, ordenado ao bem comum. Nos EUA, o tempo da lei é cronológico e utilitário: mede-se pelo interesse econômico.

Assim, o princípio “a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” revela mais que uma regra técnica; ele expressa a ética do direito brasileiro, que reconhece na passagem do tempo a consumação da justiça e na memória cultural o direito do povo.

7. Conclusão

A Lei Sonny Bono representa, sob o prisma da Constituição de 1988, um exemplo paradigmático de retroatividade inconstitucional. Se transplantada para o Brasil, ela violaria o art. 5º, XL, o art. 6º da LINDB e o art. 5º, XXIX, por:

  1. negar o princípio da irretroatividade;

  2. frustrar o direito adquirido da coletividade ao domínio público;

  3. desvirtuar a função social da propriedade intelectual.

O domínio público não é uma ausência de direitos, mas a presença do direito comum. Sua defesa é dever de todo jurista e escritor que compreende que a liberdade criadora floresce não da extensão do monopólio, mas de sua justa limitação no tempo.

Referências essenciais

  • Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

  • Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942).

  • Lei nº 9.610/1998 – Direitos Autorais.

  • Eldred v. Ashcroft, 537 U.S. 186 (2003).

  • U.S. Copyright Term Extension Act (1998) – Sonny Bono Act.

  • PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado.

  • ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral.

  • SILVEIRA, Newton. Propriedade Intelectual: Direito, Economia e Cultura.

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